Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Francisco

A morte de um papa é a morte de um pai

Papa Francisco
Papa Francisco em Via Crucis em 2020, durante lockdown na pandemia da Covid-19. (Foto: EFE/EPA/MASSIMO PERCOSSI)

Ouça este conteúdo

“E eu digo-te que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” 
(Mt 16, 18)

Este cronista de sete leitores ainda era muito pequeno para compreender toda a dimensão da dor quando morreram os papas Paulo VI e João Paulo I — este após um brevíssimo pontificado de 33 dias —, mas guarda no coração o pranto pelas mortes de João Paulo II, há exatos 20 anos, e de Bento XVI, no último dia daquele fatídico 2022. A dor e o pranto voltam agora. Morreu nosso papa; morreu nosso pai.

Acabei de perder um pai; por isso peço a todos, amigos e inimigos, que respeitem a minha dor e não venham agora falar mal dele. Adiem as críticas, segurem os adjetivos, silenciem as sentenças.

Léon Bloy dizia que o acaso é o nome moderno do Espírito Santo. Portanto, um mundo incapaz de crer na vida eterna e indiferente ao Logos — o sentido maior que estrutura a realidade inteira — chamará de coincidência o fato de que o Santo Padre tenha partido exatamente um dia depois da Páscoa de Nosso Senhor. 

Nos últimos dias percebemos quanta coisa pode acontecer em apenas uma semana. Vimos o Senhor entrar em Jerusalém montado em um jumentinho e ser saudado pelo povo; vimos o povo, em decisão democrática, pedindo a Sua condenação e a soltura de um bandido revolucionário; vimos o homem que Ele escolheu para chefe da Igreja negá-lo por três vezes; vimos o próprio Logos sendo humilhado, cuspido, torturado e crucificado; ouvimos as suas sete palavras no Calvário; fizemos silêncio no Sábado em que apenas uma frágil criatura — Maria — guardava a fé de toda a Igreja; e finalmente descobrimos o túmulo vazio e o Universo plenificado pela Ressurreição. 

Na Sexta-Feira da Paixão, pedi a meu filho que observasse atentamente o sacerdote prostrado diante do altar. Eis aí o nosso Santo Padre. Ele se prostrou diante do Senhor morto e agora se coloca diante da imortalidade pascal. 

De tudo que o Papa Francisco fez em seus 12 anos de pontificado — e ele fez muitas coisas boas —, vou guardar com especial zelo em meu coração a imagem da mensagem urbi et orbi na Praça de São Pedro, em 28 de março de 2020, no início da pandemia.  

Hoje a praça estará cheia; deixo aos meus sete leitores a lembrança do dia em que ele falou diante de ninguém — e ao mesmo tempo para todo o Cosmos. 

Naquele dia, ele rezou por nós. Agora nós rezaremos por ele.

VEJA TAMBÉM:

 
*** 

 
A praça não estava vazia; nunca houve uma praça mais cheia do que aquela. Enquanto o velho padre dava a sua bênção, os olhos das vítimas refulgiam na escuridão. Era gente de todas as idades, de todas as cores, de todas as línguas, de todos os cantos do mundo. Mas alguma coisa as unia, e essa coisa era a dor. Irmanadas pelo sofrimento, as vítimas ouviam as palavras e bebiam os silêncios que retumbavam nas pedras da velha praça. A dor era a linguagem comum entre eles, o ar que elas respiravam, o sangue em seus corações. A dor é a sua pátria: eis a multidão da dor, meu velho padre. 

Estavam na praça as crianças da China. As meninas, sobretudo as meninas, milhões delas, com seus coraçõezinhos, com suas mãozinhas, com seus olhos diminutos, com os nomes que não puderam ter, com os choros que não puderam chorar, com as palavras que não puderam dizer, com as luzes que não puderam ver, com os passos que não puderam dar, com os amores que não puderam conhecer, com os filhos que não puderam conceber, mas acima de tudo — acima de tudo! — com as mortes que lhe foram dadas e lhes franquearam a conquista da eternidade. 

Bem ao lado das crianças da China, havia outra multidão de pequenos. Eram os mártires das clínicas da morte, no Velho e no Novo Mundo, órfãos assassinados por aqueles que deveriam amá-los. O mais surpreendente — eu diria: o mais miraculoso — é que todas elas, as crianças abortadas, sejam do Ocidente ou do Oriente, do Cantão ou da Califórnia, de Amsterdã ou de Nova York, de Dublin ou de Nanquim — sorriem. As vítimas sorriem para os seus algozes, e sorriam também agora, na praça. 

E na praça também estavam os fiéis, aqueles que foram obrigados a rezar em silêncio no escuro de suas casas, sem padre, sem evangelho, sem comunhão. Aqueles que foram impedidos de fazer o sinal da cruz, sob pena de cruz. Que foram impedidos de dizer o nome de Deus, sob pena de nunca dizer mais nada. Que foram impedidos de ir à igreja, porque não havia mais igreja. Que foram impedidos de ler a palavra, porque não havia mais idioma. Que foram impedidos de ter esperança, porque o desespero se tornara a lei. 

Lotavam a praça os mártires da Rússia, da China, da Armênia, da Alemanha Oriental, da Polônia, da Hungria, da Romênia, da Tchecoslováquia, da Bulgária, da Albânia, da Ucrânia, da Letônia, da Lituânia, da Estônia, do Camboja, do Vietnã, da Coreia do Norte, do Afeganistão, do Timor, de Angola, de Moçambique, da África do Sul, da Etiópia, de Uganda, do Zimbabwe, da Nigéria, do Irã, do Iraque, da Síria, da Turquia, da Arábia Saudita, do Sri Lanka, de Cuba, da Nicarágua, da Venezuela. Todos aqueles que tentaram rezar e não puderam. Todos aqueles que buscaram o Pão e não tiveram sequer o pão. Os fuzilados, os esfaimados, os afogados, os envenenados... 

No vazio da praça, vigiam aqueles que foram maiores que o mundo. Maximiliano Kolbe, que deu a vida por seu irmão. Edith Stein, que deu a vida pelo seu povo. Padre Kentenich, que viveu o flagelo do Estado e o exílio da Igreja. Padre Alfred Delp, que não se curvou ao mal. Dom Van Thuam, que pregava a seus carcereiros. Pio XII, que salvou 800 mil almas. João Paulo II, que venceu o dragão vermelho. Os massacrados de Canudos, lutando até o último homem. Os pastorinhos de Fátima, que viram a dança do Sol. Viktor Frankl, que via os homens e mulheres adentrarem a câmara de gás rezando o Pai-Nosso ou cantando Shemah Israel... 

Todos estavam na praça quando o velho padre concedeu a bênção universal. E de repente ouviu-se uma voz: “Hoje estareis comigo no paraíso”.

VEJA TAMBÉM:

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.