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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Conto distópico

Ainda que eu ande no vale das sombras

A história de um militante socialista que descobre uma terrível verdade sobre o país em que vive. (Foto: Isabella Martins/BSM)

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Observai o homem que se aproxima do confessionário. Ele vem cabisbaixo, com os olhos vermelhos e as faces pálidas, os cabelos em desalinho e as roupas amassadas de quem dormiu vestido e saiu de casa sem ao menos lavar o rosto. Nas costas, carrega uma mochila desbeiçada. Seu nome é Jorge, ele procura o Padre Jonas. Veio com a certeza de que o sacerdote está ali, e de fato reconhece-o por trás das grelhas. Ajoelha-se e diz:

― Padre, eu preciso da sua ajuda.

Um mês antes, Jorge estava reunido com o Secretário-Geral do Partido, no Diretório da cidade antigamente chamada São Paulo. Tratava-se de uma ocasião muito especial: de tempos em tempos, o líder deixava Brasília e se dirigia a algum ponto do país para conversar com militantes locais. Jorge trabalhava sob as ordens do Secretário-Geral, mas seus contatos eram quase todos por videoconferência.

No encontro, Jorge apresentou o relatório final de seu trabalho com as torcidas organizadas. O Secretário-Geral, cujo rosto, juntamente com os dos outros membros do Coletivo Supremo, está estampado em todos os prédios públicos do país ― ou seja, em todos os prédios ― leu o relatório em silêncio por doze minutos e meio, durante os quais Jorge debalde procurou alguma expressão de contentamento ou contrariedade no rosto do dirigente partidário. 

Ao final da leitura, o Secretário-Geral levantou os olhos e, para grande surpresa de Jorge, sorriu. Em seus vinte anos de Partido, cinco deles trabalhando com o Secretário-Geral, Jorge não se lembrava de tê-lo visto sorrir. Jorge sabia que é necessário mover diversos músculos da face para sorrir; mais especificamente, 12 músculos. 

Jorge chegara a pensar que alguns desses músculos estariam para sempre danificados no rosto do Secretário-Geral. Mas, como se podia constatar agora, essa hipótese era falsa. O homem sorria.

E sorria com dentes amarelos, algo tanto mais estranho quando se sabia que o Secretário-Geral não fumava e não usava drogas. Jorge tinha convivido de perto com os noiados da Craco, em tarefas do Partido, e era capaz de reconhecer pelos dentes não apenas um usuário de pedra, mas até mesmo estimar há quanto tempo o sujeito era viciado. 

Os dentes que o Secretário-Geral lhe exibia agora possuíam a cor de alguém que usou crack por sete anos. Obviamente, o Secretário-Geral tinha recursos para fazer um tratamento naqueles dentes a ponto de deixá-los mais brancos do que a pomba da paz, mas não o fizera.

― Jorge, Jorge... Você é um velho e bom companheiro. Seu relatório está excelente.

― Obrigado... Zé.

Jorge sempre hesitava ao chamá-lo de Zé. Tinha permissão para isso, mas preferia sempre o termo companheiro, mais impessoal e respeitoso. Naquele momento, porém, Jorge se sentia mais próximo do dirigente, embora nem sonhasse com a possibilidade de pertencer ao seu círculo íntimo.

No fundo, Jorge sabia que o elogio era merecido. Durante um ano, ele havia trabalhado como agente recrutador junto a uma das torcidas organizadas da cidade, antigamente chamada São Paulo. 

Desde os tempos da Resistência, as organizadas revelaram-se aliados importantes do Partido na luta contra os milicianos negacionistas, especialmente nas Jornadas de 22, que impediram o golpe conservador nas eleições, graças à ação eficaz do ministro Anaximandro, que resultaria na eliminação do Inominável, dois anos depois. 

Quando sobreveio a proibição definitiva dos jogos com público, após a 21ª onda do vírus genocida ― especialmente letal para as grávidas e as idosas ―, houve uma crise nesse relacionamento, mas o Partido agiu com eficiência, realocando as massas de ex-torcedores nas frentes de cultivo da Cannabis farmacológica e no comércio de substâncias recreativas.

No entanto, essa foi tão-somente uma solução provisória; na visão do Coletivo Supremo e do Presidente Deimos, toda aquela paixão, toda aquela energia vital antes direcionada para a eliminação dos torcedores adversários deveria ser canalizada para algo socialmente relevante, que contribuísse para a edificação do socialismo global. 

Após ouvir a voz da comunidade em várias audiências públicas, o Partido decidiu transformar os membros das organizadas em soldados de elite da Luta Antifascista. Jorge foi um dos militantes que ajudaram a promover essa coalizão entre os ex-torcedores e o Partido.

― Graças a operadores dedicados como você, a transformação das torcidas organizadas em Coletivos Antifascistas já está praticamente finalizada em todo o país. Quando vejo os antigos corintianos identificando e neutralizando negacionistas como se fossem os antigos palmeirenses, vejo que o nosso trabalho não tem sido em vão, Jorginho.

Jorginho! De fato, esse era o dia das coisas inéditas. Tanto tempo trabalhando juntos e o Secretário-Geral nunca havia usado um diminutivo para referir-se a alguém, muito menos a ele. 

Sim, ele sabia que o diminutivo possuía uma certa ambiguidade, usado igualmente para demonstrar carinho ou desprezo. Mesmo assim, o coração de Jorge deu um pequeno salto naquele instante; e ele se lembrou dos tempos de faculdade, quando todos o chamavam de Jorginho do Partido.

Quando o Secretário-Geral o despediu, não sem antes dizer que a sua nova tarefa seria enviada por meio de cripto mensagem em 72 horas, Jorge sentia-se nas nuvens. Só queria chegar em casa e dar as boas notícias para Ana. 

Ao sair do prédio do Diretório, estava tão empolgado que se esqueceu de colocar a máscara tripla do Partido. Foi despertado pelo berro eletrônico de um drone facial, que sossegou apenas quando Jorge pôs a máscara tripla e exibiu o QR code de militante, impresso em sua jaqueta. Assim que o drone se virou para o outro lado, Jorge disse em voz baixa:

― Mais respeito. Eu sou o Jorginho do Partido.

(Continua no próximo domingo.)

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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