Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Escuridão ao meio-dia

Filipe Martins, o homem que não vendeu sua alma

Além da prisão: caso Filipe Martins revela a tentativa do Estado de destruir o indivíduo e impor uma realidade moldada pelo poder. (Foto: Arthur Max/MRE)

Ouça este conteúdo

“As mesmas trevas não serão obscuras para ti, e a noite brilhará como o dia: a densa escuridão é para ti como a luz.”
(Salmo 138)

Algumas histórias não morrem. Por mais distantes no tempo ou no espaço que pareçam, possuem uma ressonância permanente, um eco que se recusa a silenciar. São contos que, em vez de desvanecerem na poeira da história, se manifestam em repetições sombrias, como se a humanidade insistisse em revisitar seus próprios abismos.

Recentemente, ao escutar as palavras do advogado Jeffrey Chiquini sobre o caso de Filipe Martins, uma voz antiga e rouca, vinda de um romance de quase um século, parecia sussurrar em meus ouvidos: a voz de Arthur Koestler e seu imortal “O Zero e o Infinito”, considerado pela Modern Library um dos 100 maiores romances do século XX.

O livro, conhecido pelo título original “Darkness at Noon” (“Escuridão ao meio-dia”), faz um retrato impactante da perversão da justiça em um Estado totalitário. 

O protagonista da história, Nikolai Rubashov, um bolchevique veterano, é engolido pela máquina que ajudou a construir. Acusado de crimes absurdos contra o Partido, ele é submetido a uma tortura psicológica que desmonta não seu corpo, mas sua alma. 

Os interrogadores não buscam a verdade factual, mas uma confissão — uma “última contribuição” à Causa — que valide a narrativa do regime e apague qualquer vestígio de dissenso. O sol da razão desaparece no ocaso, enquanto a escuridão da mentira planejada devora o meio-dia.

Não é difícil traçar um paralelo, mesmo que com as devidas proporções de contextos históricos e políticos, com o que Chiquini descreve como a via-crúcis de Filipe Martins no Brasil contemporâneo. Filipe é uma vítima de acusações falsas, baseadas única e exclusivamente numa delação premiada resultante de coerção ilegal.

A narrativa de Mauro Cid, o delator, foi costurada sob uma pressão avassaladora, uma chantagem demoníaca, com o cerceamento de direitos básicos — proibições de visitas, isolamento, ameaças a familiares — que minaram sua resistência e o reduziram a um autômato. Uma tática para “espanar”, como pontua Chiquini, e, assim, criar uma falsa narrativa acusatória.

Aqui, o espelho entre Rubashov e Filipe Martins se torna translúcido. Ambos, em suas respectivas esferas, são homens encurralados pela máquina, coagidos a se dobrar a uma lógica pervertida que não busca a verdade, mas sim a utilidade política. 

Rubashov, em sua cela, debate-se com o zero da sua individualidade em face do infinito do coletivo, da Linha do Partido. Levado a um ponto de fratura em que a inteligência humana cede lugar ao leviatã estatal, o prisioneiro é convencido de que sua confissão falsa é, de alguma forma, um ato de lealdade superior.

VEJA TAMBÉM:

O paralelo entre Rubashov e Filipe Martins, porém, não é perfeito. Por dois motivos. 

Primeiro, Filipe Martins, ao contrário de Rubashov, jamais cometeu qualquer crime em nome de seu projeto político, bem como não teve qualquer responsabilidade pela implantação da ditadura em seu país. 

Segundo, e mais importante, Filipe não cedeu à tortura e não mentiu. Ao contrário, ele afirmou com todas as letras: “Não delatarei porque não há o que delatar”. 

Essa resposta, de uma grandeza ímpar (grandeza que Rubashov não teve no romance, e os líderes bolcheviques não tiveram nos Processos de Moscou), nos conduz à frase de Sócrates no imortal diálogo “Górgias”, de Platão: “Se fosse imperioso ou praticar ou sofrer uma injustiça, eu preferiria sofrê-la a praticá-la.” 

Enquanto Rubashov (na literatura) e Mauro Cid (na realidade), cederam às exigências dos ditadores, Filipe recusou-se com hombridade a delatar falsamente, mesmo diante da perspectiva de penas severas. Essa resistência o jogou em uma masmorra, uma solitária, por dez dias no escuro — e o condenou a seis meses de prisão sem denúncia e sem provas. 

E é neste ponto que o título de Koestler ressurge com força avassaladora: “Escuridão ao meio-dia”. O "meio-dia" sugere clareza, a plenitude da luz solar, a transparência da justiça. 

No entanto, o que Filipe Martins achou não foi a luz da verdade, mas a escuridão física e metafórica de uma cela sem luz, sem contato com advogados, sem o conhecimento da família. Dez dias imerso em um breu imposto, uma noite artificial em pleno dia, precisamente porque se recusou a participar de uma farsa. 

Seis meses trancafiado numa penitenciária, mesmo absolutamente inocente. É a antítese da justiça, um ato que transforma o claro em obscuro, o dia em noite, a liberdade em prisão e a verdade em mentira.

Aqui não estamos falando apenas sobre a prisão física, mas sobre a aniquilação do indivíduo, a tentativa de quebrar sua vontade e forçá-lo a aceitar uma realidade fabricada pelo poder

Assim como Rubashov é forçado a um autoquestionamento agonizante sob a ótica da razão de Estado, Filipe Martins foi empurrado para o limite de sua resistência, não para que confessasse seus próprios crimes, mas para que criasse crimes para outros. 

Mas, para decepção de seus algozes e ao contrário de Mauro Cid-Rubashov, ele se negou a participar da farsa. Filipe é o herói inesperado dessa trama farseca: o homem que não vendeu sua alma.

A crônica do caso Filipe Martins traz de volta às páginas sombrias de Koestler, lembra-nos a vulnerabilidade e a fragilidade do indivíduo perante a máquina do Estado. 

Quando o sistema de poder, em vez de buscar a verdade, decide construí-la a seu bel-prazer, a escuridão cobre o meio-dia, e a justiça se verga sob o peso de sua própria perversão. É um alerta, uma crônica atemporal sobre a eterna vigília que se faz necessária para que a luz não seja completamente engolida pela noite imposta.

Canal Briguet Sem Medo: Acesse a comunidade no Telegram e receba conteúdos exclusivos. Link: https://t.me/briguetsemmedo

Conteúdo editado por: Aline Menezes

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.