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Durante suas inesquecíveis aulas sobre os clássicos da literatura, o professor José Monir Nasser costumava perguntar aos alunos:
— Vocês se arrependem de alguma coisa na vida?
Sempre havia um que enchia a boca para dizer:
— Não. Eu não me arrependo de nada!
Monir então observava, com seu humor inigualável:
— Pois eu tenho uma péssima notícia: você não é um ser humano.
Lembrei-me dessa passagem do professor Monir quando li uma recente declaração do ministro Gilmar Mendes, o qual garante não se arrepender de nada que fez nos últimos anos em relação à Lava Jato. “Je ne regrette rien”, disse o decano do STF, citando a famosa canção de Edith Piaf.
Uma das principais características dos psicopatas, apontada pelo psiquiatra polonês Andrew Lobaczewski em seu livro “Ponerologia: Psicopatas no Poder”, vem a ser a completa ausência do sentimento de culpa. Psicopatas não se arrependem de nada. Quanto mais poderosos, eles não apenas não se arrependem como se tornam absolutamente incapazes de perdoar qualquer coisa nas outras pessoas.
É por isso que os grandes vilões da literatura apresentados nas aulas de Monir — tais como Iago, Macbeth, Medeia, Mefistófeles, juiz Holden — jamais se arrependem. O arrependimento pressupõe uma dose de humildade que esses personagens jamais poderiam permitir em si mesmos. Para aqueles que se fecham à graça e à misericórdia de Deus, o perdão é o maior dos acintes.
O sorocabano Nelson Ribeiro Fonseca Júnior, de 34 anos, casado, pai de uma criança de dois anos, é um ser humano. Como tal, arrependeu-se por ter levado para casa uma bola que se encontrava no museu da Câmara dos Deputados. Ele era um dos manifestantes que entraram no prédio da Câmara em 8 de janeiro de 2023, e diz ter encontrado no chão a bola, um objeto de valor apenas simbólico, autografado por Neymar Jr. e outros jogadores do Santos Futebol Clube.
Após 20 dias, Nelson foi até a Polícia Militar e devolveu a bola, intacta. Afinal de contas, ela não lhe pertencia. Mesmo assim, o Imperador Calvo votou para condená-lo a 17 anos de prisão em regime fechado pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado, associação criminosa e furto qualificado. É isso mesmo que vocês leram: 17 anos por uma bola — uma vez que todos os outros crimes são criações ficcionais de baixa literatura. Pobre Nelson: deve ter se arrependido de seu arrependimento.
Na história universal dos golpes de Estado, esta é a primeira vez que um dos golpistas comparece espontaneamente à polícia para devolver um objeto pertencente ao próprio Estado que ele supostamente tentara derrubar. Nem a polícia de Stálin seria tão imaginosa.
Mas eis que agora recebemos uma notícia do além-mar. O deputado português André Ventura, do partido Chega, acaba de anunciar que irá realizar uma investigação própria sobre as atividades de Gilmar Mendes em Portugal. Segundo Ventura, o partido recebeu “milhares de denúncias” sobre o decano da Suprema Soviete Federal.
Estou certo de que as referidas investigações não devem causar grandes preocupações a Gilmar — afinal, ele é um homem que não tem motivos para arrependimento. No entanto, complementando a referência musical a Edith Piaf, não posso encerrar esta crônica sem lembrar os versos de um compositor muito admirado pelo ministro:
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão...
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