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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Réveillon de cinismo

Golpe de Master: o Imperador, a Imperatriz e o Banqueiro

Moraes e a esposa, a advogada Viviane Barci de Moraes. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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Algo interessante une a neve de São Petersburgo em 1888 e o calor asfixiante de Brasília em 2025. Em dezembro daquele ano, Anton Tchekhov, o médico que dissecava a alma humana com a precisão de um bisturi, escrevia a contrarrelógio. Pressionado por editores rivais, ele concebeu o genial conto A Aposta, publicando-o exatamente na virada do ano. O conto é uma autópsia da vaidade: um banqueiro e um jovem advogado fazem uma aposta de dois milhões de rublos. O advogado afirma que a prisão perpétua é preferível à pena de morte; o banqueiro diz o contrário. Para provar sua tese, o jovem aceita ser colocado em isolamento absoluto por quinze anos. Se o advogado conseguir suportar a privação da liberdade por 15 anos, o banqueiro lhe pagará dois milhões.

Tchekhov não escolheu a data ao acaso. O Ano Novo é o marco zero da ilusão humana, o dia em que fingimos que o tempo é uma página em branco, quando, na verdade, ele é o carcereiro que nos consome. No conto, o advogado usa o tempo para se desintegrar e renascer intelectual e espiritualmente. Ele lê milhares de livros, estuda línguas, teologia e filosofia, para concluir, no último minuto, que as vaidades humanas não passam de um grande vazio. Ao final, com um gesto que está entre os momentos culminantes da literatura russa, o advogado mostra o seu desprezo pela visão materialista e estúpida de seu rival.

Corte para o Brasil de hoje. Aqui, a analogia de Tchekhov adquire feições de um realismo fantástico perverso. Vivemos uma aposta onde os personagens não buscam a transcendência pelo isolamento, mas o domínio pela onipresença. No centro do palco, o Banco Master de Daniel Vorcaro e o nosso assaz conhecido Imperador Calvo.

Diferentemente do prisioneiro de Tchekhov, que se trancou em um quarto para descobrir a futilidade do mundo, o nosso advogado transformado em juiz e o seu círculo de comparsas parecem ter descoberto a utilidade de se trancarem nos cofres do poder. O escândalo do Banco Master é um desfalque financeiro de proporções bíblicas — um rombo de R$ 41 bilhões e o uso de créditos fictícios que lesaram um milhão de cidadãos.

No conto original, o advogado condena a si mesmo à reclusão para provar um ponto moral

O contrato de R$ 129 milhões entre o Master e o escritório da Imperatriz Consorte é o valor da nossa aposta nacional. No conto de Tchekov, o advogado renega os milhões; na nossa crônica política, os milhões parecem ser o cimento que une o dono da lei ao dono do banco. Um autêntico golpe de Master!

A ironia mais cruel reside na inversão da pena. No conto original, o advogado condena a si mesmo à reclusão para provar um ponto moral. No Brasil de 2025, Imperador não se condenou ao isolamento. Em vez disso, ele utilizou a toga e concebeu a maior farsa jurídica da história para Jair Bolsonaro à prisão perpétua que cedo ou tarde poderá ser comutada em pena de morte.

Na aposta brasileira, as cartas estão marcadas: para o inimigo, o rigor da lei e o isolamento; para os parceiros de contrato milionário, a omissão escandalosa e o cinismo triunfante do regime.

O advogado de Tchekhov terminou a história escrevendo uma carta de desprezo absoluto pelo mundo e fugindo para o anonimato. Ele não queria o ouro do banqueiro, porque o ouro era mentira.

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Nós, brasileiros, assistimos ao fim de 2025 com a sensação oposta. Sentimos a impotência de quem vê o tempo passar e a verdade se escancarar sem maiores consequências. O banqueiro, após uma brevíssima passagem pela prisão, caminha pelas frestas de um sistema que o Imperador Calvo e seus cúmplices blindaram a pretexto de defender o es-ta-do-de-mo-crá-ti-co-de-di-rei-to.

O conto de Tchekhov termina com uma libertação. Não por acaso, foi publicado no primeiro dia de 1889 — o ano em que um país do outro lado do mundo viveria o início de um pesadelo chamado República. Resta saber quando essa aposta espúria vai acabar e poderemos abrir a porta da cela das vítimas.

“Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade e a deformidade pela beleza. Ficaríeis admirados se, em consequência de circunstâncias imprevistas, nascessem, nas macieiras e laranjeiras, em vez de maçãs e laranjas, sapos e lagartixas, ou se as rosas de repente começassem a exalar odores de cavalo suado. Pois igual eu sinto diante de vós, que trocastes o céu pela terra. Não vos quero compreender.”
(Anton Tchekhov, “A Aposta”)

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