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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Justiça às avessas

Julgamento de Bolsonaro: o assassinato do Direito no Brasil

Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia ouvem advogado e ex-senador Demóstenes Torres, que usou 20 minutos da sustentação para elogiar ministros e contar casos. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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Acordei bem cedo, fiz minhas orações, dei uma olhada pela janela na manhã ainda escura e preparei um café. Com a xícara na mão, percebi que havia um envelope debaixo da porta.

O autor da carta era um velho advogado, homem sábio e piedoso, que conheci há muitos anos e que me ajudou a abandonar as ilusões estúpidas que escravizavam minha alma. De pronto, reconheci a caligrafia e o estilo do querido mestre. Com a licença dos meus sete leitores, reproduzo aqui as palavras do missivista:

“Caro Paulo,

Permita-me a ousadia de compartilhar minhas impressões sobre o que está acontecendo em Brasília.

Não é de hoje que a velha ciência do Direito, senhora de hábitos discretos e de rigor jesuítico, se vê maltratada por modas de ocasião. Mas há um requinte recente de crueldade: não mais se erra por precipitação, erra-se por método — ou melhor, pela inversão dele.

Primeiro decide-se o culpado; depois, inventa-se a hipótese; por fim, vasculham-se gavetas e consciências até que algum papel, alguma frase ou algum fragmento brilhe como prova. O nome disso, nos bons manuais, é pesca probatória; nas más épocas, chama-se poder.

Os clássicos ensinavam outra ordem: formula-se uma hipótese, colhem-se dados sob cadeia de custódia, confrontam-se versões sob contraditório e só então se alcança uma conclusão provisória, sempre aberta à refutação — Tomás de Aquino sorriria. No regime invertido, a conclusão é dogma; a hipótese, dogmática; a prova, adereço.

A refutação vira insolência; o pedido de vista, desacato; o acesso a elementos de prova confunde-se, maliciosamente, com acesso aos autos — como se a sala arrumada substituísse o porão onde está o motor.

As denúncias recentemente trazidas a lume — que a história julgará com a serenidade que falta aos dias — não inventam o fenômeno; apenas lhe dão nome e roteiro: relatórios “aperfeiçoados” para caber no veredicto previamente escolhido; gabinetes versados em antecipar “alvos” antes que nasçam os fatos; linguagem empolada que mascara o arbítrio sob o verniz de “ordem pública”. Se confirmadas, tais peças não descrevem casos isolados, mas a liturgia de um laboratório ao avesso, onde a pergunta nasce depois da resposta.

Veja, leitor, como a semântica colabora com a alquimia: diz-se “amplo acesso aos autos”, e os leigos creem que se franqueou o mundo; fala-se em “acesso aos elementos de prova”, e o essencial fica na penumbra — integrais de depoimentos, metadados de dispositivos, percursos técnicos, interstícios que dão sentido às frases recortadas. “Autos” são o salão de visitas; “elementos” são a ossatura. Confundir um e outro é truque de prestidigitação: mostra-se a luva, escondem-se as mãos.

Se se deseja um exemplo de laboratório invertido, tome-se o caso daquele rapaz, o Filipe Martins. Por um registro migratório que depois se reconheceu discrepante, construiu-se a tese mirabolante de uma “fuga” ao estrangeiro.

Vieram a público dados técnicos — geolocalização, deslocamentos internos, registros ordinários de vida civil — que contrariavam a lenda; o próprio documento oficial de entrada e saída foi corrigido, sem que isso bastasse para desfazer o feitiço.

A prisão converteu-se em cautelar permanente, como se o processo fosse um corredor sem saída: meses de cárcere, tornozeleira, proibição de falar, de circular, de existir em praça pública.

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A defesa pediu o todo das provas — não só o papel polido dos autos, mas a matéria-prima: cadeias de custódia, integrais de depoimentos, registros completos. Em troca, serviram-lhe porções, recortes, migalhas.

Quando se buscou, pelas vias civis, as informações completas, sucederam-se resistências inexplicáveis, datas faltantes, contradições técnicas: o porão permaneceu trancado, enquanto no salão se declamava a solenidade dos prazos.

Nada disso absolve por decreto — o método não absolve nem condena; apenas permite que a verdade trabalhe. Mas tudo isso revela o que aqui se denuncia: a conclusão antecede a prova; a exceção vira regra; a cautelar suplanta a sentença; e o dissenso é tratado como insolência.

No caso de Filipe, como no caso de Jair Bolsonaro e de tantos outros, a inversão do método não é detalhe processual: é o próprio coração do erro. Quando a liberdade de um réu passa a depender do humor das manchetes, quando a prova técnica é recebida como afronta ao enredo, quando o silêncio de um delator vale mais do que a palavra convergente de testemunhas e documentos, o que se pratica já não é Direito — é dramaturgia.

Nessa liturgia invertida, também o tempo sofre trucagem. O colegiado decide hoje; amanhã, sem provocação de parte, a pena “retifica” o que se publicou; votos tornam-se palimpsestos; atas, plástico maleável. A forma — esse freio humilde do poder — vira ornamento. E, porque o método já estava de cabeça para baixo, a consequência ética não surpreende: a palavra desacompanhada ganha peso de chumbo; o dado completo é repartido em fatias; a censura preventiva se fantasia de cautela. O resultado é um estado de exceção sentimental, em que cada caso “único” justifica a erosão silenciosa das garantias de todos.

Sei que é áspero dizer, mas cumpre dizê-lo com clareza de ata: não há ciência possível onde o Direito se converte em teatro. O processo penal sem refutabilidade vira arbítrio; a prova vira rumor; a decisão sem forma vira vontade. E quando a vontade assume o lugar da forma, a toga se aproxima perigosamente da batuta. É então que o Direito começa a morrer — não por um só golpe, mas por mil arranhões lentos, cada qual justificado por um “caso excepcional”.

Que fazer? Aos que ainda acreditam que o Direito é ciência e arte de conter forças, proponho um voto simples de higiene intelectual: devolvamos a ordem ao método. Hipótese antes de veredicto. Prova íntegra antes de manchete. Contraditório real antes de rótulos. Forma antes de ímpeto. E, sobretudo, a distinção semântica que parece minúcia, mas é alicerce: acesso aos autos não substitui acesso aos elementos de prova. O primeiro é vitrine; o segundo, armazém. Justiça que se faz por vitrines não resiste ao primeiro sol.

Não ambiciono aqui condenar homens; pretendo absolver o método — ressuscitá-lo, se possível. Quando o método científico do Direito é destruído, não morre apenas um réu, uma defesa, um caso: morre, aos poucos, a confiança coletiva de que amanhã haverá regras que não se dobram a humores. E sem essa confiança, meu caro leitor, não há Constituição que se sustente, nem liberdade que resista. O Direito é assassinado diante de todos, em transmissão ao vivo para o país e o mundo.

Restaurar o método é menos épico do que prender meia dúzia de culpados da semana; é também mais difícil e mais nobre. Exige coragem de perder hoje para que a lei vença amanhã. Essa coragem — não a teatral, mas a silenciosa — é o antídoto contra a tirania de toga.

Se a retomarmos, a senhora ciência do Direito, ainda ofendida, voltará a caminhar pelas arcadas, com o passo antigo dos que preferem a prova à lenda, a forma ao capricho, a lei — sempre ela — à tentação de mandar.

Fique com Deus, meu amigo. E mande um abraço aos seus sete leitores”.

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