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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Conto distópico

Meia-noite na Estação da Luz

O leito de Ana estava vazio. Mas sobre o travesseiro havia um objeto: o terço. (Foto: Aline Menezes com Leonardo AI)

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Um funcionário do hospital veio dar a notícia quando Jorge estava tomando a sétima cerveja em um boteco da estação antigamente chamada Luz, no coração da cidade. 

No último mês, a vida de Jorge se alternava entre o boteco e o quarto 609 do Núcleo de Saúde Coletiva Dr. Ernesto Che Guevara, mais conhecido como Hospital Che, antigamente chamado Hospital das Clínicas. Como funcionário do Partido, era-lhe facultado o direito de acompanhar a internação da mulher. Pela primeira vez na vida, Jorge pedira férias de 30 dias.

O médico-chefe, Dr. Henrique, garantira que o problema de Ana não era covid, e lhe assegurou que ela não seria entubada. Por uma notável coincidência, Jorge conhecera Henrique nos tempos de movimento estudantil, quando houve o julgamento dos negacionistas. 

Vinte anos haviam se passado, e Jorge não esquecera o ríctus de felicidade e ódio na face do então acadêmico Henrique no dia em que um de seus professores — um virologista famoso, com doutorado em Oxford — foi condenado à morte por defender o tratamento sem comprovação científica.

Henrique ainda não descobrira o verdadeiro problema de Ana, mas disse a Jorge estar convicto de que não ela não corria risco de vida, apenas demandava cuidados médicos especiais. Por isso, grande o espanto de Jorge ao ver o funcionário adentrando o boteco com seu uniforme roxo e seu escafandro hospitalar.

— Companheiro Jorge, não trago boas notícias.

— Que foi? Que aconteceu?

— A companheira Ana teve que ser entubada agora à tarde.

— Como assim? O Henrique me prometeu que não ia fazer isso!

— Mas o quadro mudou repentinamente e tivemos que fazer o procedimento.

— Vocês vão desentubar ela agora! Eu vou fazer uma denúncia ao Partido.

— Companheiro Jorge, a ordem para entubação veio do Coletivo Supremo.

 ***

Não houve velório. Jorge sabia que esse era um privilégio reservado apenas ao alto escalão do Partido; apesar disso, até o último instante alimentou a esperança de que o Secretário-Geral lhe enviasse uma mensagem com a permissão para ao menos ver pela última vez o corpo da esposa. 

A caixa de mensagens especiais, no entanto, permaneceu muda. Tudo que lhe permitiram fazer foi contemplar o leito de Ana no quarto 609, já vazio e preparado para receber um novo paciente.

Mas sobre o travesseiro havia um objeto: o terço. Quando a enfermeira o deixou sozinho por alguns momentos, Jorge enfiou o terço no bolso do casaco

Nesse exato momento, alguém se aproximou dele.

Era a ex-professora tucana. Tinha os olhos vermelhos; os lábios, finíssimos, tremiam como as mãos de um parkinsoniano.

— Jo-jor-ge, eu sinto muito, muito! Ela era tão boa, tão meiga, tão feliz.

— Eu sei disso, eu sei.

— Preciso te dizer uma coisa, Jorge. Eu vou ser presa hoje. Um ex-aluno veio me avisar. Mas acredite em mim: não fui eu que denunciei a Ana!

Jorge permaneceu silencioso. Sem perceber, ele tinha as mãos da vizinha entre as suas. Há quanto tempo não tocava nas mãos de alguém que não fosse Ana? Olhou para as mãos da mulher: eram cálidas, úmidas, enrugadas, repletas de manchas roxas. Foram aquelas mãos de velha, trêmulas e suadas, que o convenceram de que a vizinha falava a verdade.

— E agora eles vão atrás de você, Jorge.

Jorge largou as mãos da vizinha e contemplou-a com o ar interrogativo. Como assim? Eu, Jorginho do Partido, o homem que opera, com vinte anos de militância, o amigo do Secretário-Geral, era suspeito diante dos próprios companheiros?

Sem dizer uma palavra, a vizinha pôs um papel dobrado nas mãos de Jorge e saiu do quarto. Jorge colocou o papel no bolso em que já estava o terço. 

Sentou-se na poltrona, onde dormira tantas noites, e ficou ali, parado, silencioso, por um tempo incalculável, até perceber que o Dr. Henrique o encarava com um ar de insolência desde a porta do quarto:

— Hora de ir embora, Jorginho.

 ***

Eram seis da manhã quando Jorge abriu a porta de casa, trôpego. Uma dor de cabeça como só havia sentido no dia da morte da mãe lhe fustigava o crânio. Deitou-se no sofá da sala, sem tirar os sapatos. Era um dia do mês antigamente chamado julho; fazia muito frio, mas Jorge não se animava a buscar uma coberta no armário. 

Para esquentar as mãos, colocou-as nos bolsos do casaco, onde estavam o terço e o pedaço de papel dobrado. Quando ia retirar o terço, a caixa de criptomensagens iluminou-se. Era o Secretário-Geral. Jorge conectou o celular ao vídeo da sala. Continuou deitado.

— Então, Jorge, você achou mesmo que podia enganar o Coletivo Supremo? Achou que podia continuar casado com uma traidora do Partido, uma miliciana, uma negacionista, uma cristofascista? Achou que podia continuar ocultando os vínculos da Ana com a sua vizinha fasciotucana? 

Jorge, Jorge. Você não sabe de nada. Você é um idiota completo, mas a sua idiotice não desculpa a sua traição. Agora tá aí, bêbado, sujo, patético, deitado no sofá, acreditando que assim vai despertar a nossa compaixão. Você está acabado, Jorge. Acabado. Mas de uma coisa eu me posso me gabar: você nunca me enganou, nunca. Eu sempre soube que você era uma farsa.

A criptomensagem terminou. Um ponto branco permaneceu no meio da tela durante um tempo, como nas antigas televisões em preto e branco, segundo contavam os velhos. O Secretário-Geral era velho, era desse tempo.

Quando acordou, muitas horas depois, Jorge viu que o terço e o papel desdobrado jaziam no tapete da sala. No papel estava escrito a lápis, em letra de forma:

Meia-noite no Bar da Luz.

 ***

Não havia tempo.

No fundo do armário, Jorge descobriu uma velha mochila, dos tempos de movimento estudantil, e enfiou dentro dela algumas roupas e uma escova de dentes. Colocou a máscara tripla do Partido, jogou o celular na lixeira incineradora e guardou o terço de Ana outra vez no bolso do casaco. 

Ao passar pelo Posto de Checagem, mostrou um cartão exclusivo do Partido, com nome falso, que havia usado em algumas missões confidenciais; felizmente, ninguém se lembrou de desabilitar aquele cartão, do contrário Jorge seria preso ali mesmo.

“Incompetentes”, pensou, ao atravessar a avenida antigamente chamada Angélica rumo à estação antigamente chamada Luz.

À meia-noite, Jorge pediu uma cerveja e dois copos no balcão. O atendente era um ex-noiado da Craco, um dos poucos que conseguiram se salvar depois da conversão. 

O homem sorriu com os dentes amarelos para Jorge; será que o havia reconhecido? Em silêncio, o atendente derramou a cerveja em um dos copos e, discretamente, indicou um homem sentado a uma mesa de metal na entrada do boteco.

Levando a cerveja e os dois copos, Jorge foi até a mesa do homem. Era um sujeito alto, grisalho, de barba feita, com o rosto marcado pelas rugas e um ar de professor antigo. Jorge ofereceu-lhe cerveja, mas o homem tapou a boca do copo e sorriu:

— Obrigado, não estou bebendo hoje.

Sem a mínima mudança de tom, continuou:

— Aqui está sua passagem. Vejo que usou o seu cartão especial do Partido. Muito bem, você é do ramo. Defronte à rodoviária, numa das quinas da praça vizinha, você verá um rapaz com a máscara do Partido, igual à sua, ao lado de uma lambreta roxa. Memorize isso.

O homem fez Jorge repetir três vezes as instruções. Quando se deu por satisfeito com a memorização, disse:

— Esse rapaz o levará até o Mosteiro, que fica a 32 quilômetros. Lá você deve procurar o Padre Jonas.

***

Contemplai o homem no confessionário. Por trás das grelhas, é possível ver que o sacerdote lhe faz um gesto de absolvição

O homem, que por um longo tempo permaneceu de joelhos, levanta-se com alguma dificuldade. Tira do bolso do casaco um terço de contas de madeira. 

A meio caminho da cela, por um momento, ele para e hesita: como cumprirá sua penitência, se não reza desde a infância e esqueceu todas as orações? Eis que de alguma galeria subterrânea de sua dor levanta-se a voz de Ana, a suavíssima voz que ele ouve e repete:  

— Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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