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“Breve saberei quem sou.”
(Jorge Luis Borges)
Então, hoje, 33 anos depois daquele que foi o mais triste dos Carnavais, eu finalmente me ponho a escrever estas palavras dedicadas a você, meu filho que não nasceu e cujo nome um dia saberei.
Pelo tempo humano, você estaria agora na plenitude da idade — a idade com que Cristo padeceu na cruz para nos salvar — se eu o tivesse deixado vir à luz. Mas eu sei que, mesmo naquela época, você já tinha 33 anos, e era uma década mais velho do que o seu algoz.
Eu fui o seu Herodes, meu filho, e por isso peço perdão todos os dias. Sei que Deus já me perdoou e que você não guarda nenhum rancor em seu coração de luz; contudo, deixe-me lembrar o que aconteceu naquela terça-feira de Carnaval.
Eu havia bebido e farreado por três dias e três noites, e na última noite de Carnaval resolvi não ir à folia. Todas as minhas forças haviam se esvaído; eu era um velho de 23 anos
Em vez de dirigir-me à festança, sentei-me em um banco da praça. Naquele momento, eu não tinha olhos para ver, mas você estava ao meu lado. Pousou suavemente a mão sobre os meus ombros caídos, enquanto rezava silenciosamente uma prece por seu pai e carrasco. O silêncio era o seu modo de linguagem, mas àquela altura eu ainda não conseguia compreender.
De repente, vejo Bonfim. Em um dos lados da praça, está o velho cinema em que eu costumava assistir aos filmes dos Trapalhões com meus primos; é de lá que vem meu amigo Bonfim. Caminha sem pressa, com as mãos enfiadas nos bolsos. Estranhamente, não sorri.
A imagem que sempre guardarei de Bonfim é a de um menino sorridente, com os olhos claros e os cabelos de querubim, a pessoa mais alegre que conheci. No primeiro dia de aula no colegial, a professora Cida perguntou-nos qual carreira gostaríamos de seguir, e a resposta de Bonfim deixou-me perplexo:
— Quero ser astrofísico.
Bonfim acabaria estudando engenharia, e talvez a distância dos astros o tenha deixado triste. Quando ele para silenciosamente diante de mim, no meio da praça, não consigo deixar de perguntar:
— Por que você fez aquilo, Bonfim?
Ele me olha bem dentro dos olhos e diz:
— Paulo, eu te telefonei, mas você não quis conversar comigo, disse que me ligaria depois.
Então eu me lembrei. Se eu tivesse atendido ao chamado de Bonfim, quem sabe o que aconteceria? Talvez pudesse evitar a tragédia. O fato é que recebi a notícia da morte de Bonfim exatamente uma semana depois de entrar naquela clínica.
Bonfim desaparece. Em seu lugar, está o médico que realizou o procedimento. Ele me olha com os olhos do fundo da morte, os mesmos olhos que contavam as cédulas do pagamento. Eis que ele repete o gesto que fez para mim e para Sara (onde andará Sara?) no dia em que tudo aconteceu: o dedo indicador sobre os lábios, como se dissesse:
— Quietinho. Ninguém precisa saber de nada.
O médico vai embora, e por um instante ouço o silêncio da madrugada, cortado apenas por um longínquo lamento. É o tio Afonso, irmão de meu avô, cantando uma velha canção espanhola, que fala de Murcia e do Mar Menor.
Assim que ele cessa de cantar, vejo Antônio Costa com o seu uniforme de maquinista. É meu bisavô português, que foi deixado sozinho no Brasil aos sete anos. Suas últimas palavras no quarto de hospital nunca sairão de minha memória:
— Papai! Mamãe!
Meus pensamentos se dirigem agora à casa vazia, ao lado da praça, que durante três dias e três noites usamos como valhacouto para nossas loucuras carnavalescas. É uma casa sem luz, sem móveis, sem vida.
Alguns vultos trevosos se movimentam entre os cômodos, numa espécie de festa clandestina, e estou entre eles. Há três retratos na parede: uma família que morreu em um acidente de carro exatamente no dia em que nasci, 10 de julho de 1970.
A aurora começa a mostrar seus dedos róseos, e meu olhar se volta para a Igreja Matriz, no lado oposto da praça. Um pequeno grupo de fiéis entra vagarosamente na igreja. O sino toca seis vezes: é a hora do Ângelus. Aproximo-me, mas ainda não tenho coragem para entrar; precisarei de mais alguns anos.
No entanto, contemplo nas paredes da velha igreja as marcas deixadas pela água da chuva, torrentes de um pranto do céu.
Bonfim queria estudar as estrelas, o médico tentou se refugiar no silêncio, Afonso cantou, Antônio reencontrou seus pais. E ao nosso lado, meu amado filho não nascido, eu sei que estava Nossa Senhora do Silêncio, Nossa Senhora dos Pecadores, Nossa Senhora dos Ateus — aquela que jamais abandona seus filhos, mesmo no Carnaval, mesmo na clínica, mesmo no Calvário.
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Conteúdo editado por: Aline Menezes




