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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Ano Novo

Memórias do chinelo: para entrar em 2026 com o pé direito

A palavra chinelo vem do latim planella, que significa “plano” ou “achatado”. (Foto: Imagem criada usando ChatGPT/ Gazeta do Povo)

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Minha mãe levantava-se muito cedo. Para não nos acordar o apartamento era pequeno ela calçava seus chinelos no escuro e ia preparar o café. As primeiras impressões do meu dia, portanto, vinham pelo olfato, com o cheiro do café vindo da cozinha. Gradualmente, e ainda de olhos fechados, eu ouvia os primeiros sons da manhã, entre eles os delicadíssimos passos de minha mãe da cozinha para a sala, onde eu dormia em um sofá bicama.

Aracy nunca me bateu. Um dia, quando quebrei um vaso de cristal brincando de Batman, ela chegou a levantar o chinelo, mas desistiu de utilizá-lo quando eu prometi comprar um vaso novo para ela. Promessa de menino não tem muita validade, mas eu acabei comprando o vaso uns vinte anos depois. O chinelo suspenso no ar e o vaso quebrado no chão da sala são imagens que ficaram para sempre na memória; parece que os estou vendo neste exato instante.

Com quatro ou cinco anos, eu tinha um chinelinho marrom e um cachorrinho de plástico. Gostava muito de ambos, considerava-os quase como extensões de meu próprio corpo. Mas os meus pés cresceram, e o cachorrinho de plástico se perdeu quando mudamos de apartamento. Foi nessa época que meu pai comprou a nossa primeira TV a cores.

Uma das preocupações de Vó Maria era nunca deixar o chinelo virado

Na televisão, uma das propagandas mais bacanas era de chinelos. Um homem magro e simpático, com voz de locutor de rádio e sobrancelhas grossas, anunciava uma marca de chinelos que “não deformam, não têm cheiro e não soltam as tiras”. Depois vim a saber que o seu nome era Chico Anysio. Uma das curiosidades a marca de chinelos anunciada pelo Chico é que ela era usada tanto por minha mãe quando por nossa empregada, a querida dona Clarice, que morava em Carapicuíba. Eu também tinha o meu par, em substituição ao chinelinho marrom. Todo mundo usava, todo mundo amava.

Uma das preocupações de Vó Maria era nunca deixar o chinelo virado. “Chinelo virado, a mãe morre”, dizia um antigo adágio. Infelizmente eu devo ter esquecido o chinelo virado algumas vezes, pois do contrário Maria e Aracy ainda estariam aqui, rezando por mim e por minha irmã, como faziam todos os dias. Ah, Vó Maria também usava aqueles chinelos, mas não sei se ela precisa deles no Céu.

A palavra chinelo vem do latim planella, que significa “plano” ou “achatado”. Dizem que não há nada mais fino que havaiana de gordo, mas, como esse tipo de piada deve estar proibido hoje em dia, é melhor a gente terminar esta crônica falando sobre o simbolismo clássico dos pés, que constituem a razão de ser dos chinelos. Como devem saber meus sete queridos leitores, os pés representam a alma em sua trajetória pela existência.

Por isso, meus amigos, eu desejo que todos vocês entrem com o pé direito não apenas no novo ano, mas na vida nova que Deus preparou para todos nós uma vida que só conquistaremos com os pés fincados na realidade e os olhos postos no Céu.

Isso é a coisa mais direita a fazer, com ou sem aqueles chinelos.

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