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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Memórias

Minha mãe e meu pai: memórias que a saudade não apaga

Saudade é memória viva: entre dores e ternuras, guarda o legado de pais que ensinaram amor, fé e coragem em cada gesto simples. (Foto: Paulo Briguet/Arquivo pessoal)

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Por onde vou, carrego minha saudade. Dia e noite, ela sempre está comigo, mas tem vida própria. Às vezes fala alto, às vezes permanece calada, às vezes dorme e sonha, porém nunca morre. Viverá enquanto eu viver, por ser feita do mesmo tecido que compõe o coração. Tal como ele, tem movimentos involuntários. Hoje, ela acordou e me disse:
— Paulo, escreva sobre seus pais.

Quem sou eu para desobedecer?

Minha mãe chorava na rodoviária todas as vezes em que eu pegava o ônibus para Londrina. Meu pai fumava à noite no escuro da sala de estar e tossia; sua tosse tinha a notável capacidade de embalar meu sono; se ele estava ali, nada de mau poderia acontecer. Minha mãe dizia, sempre que levava um susto: “Jesus, Maria, José!” Meu pai telefonava de manhã (eu sempre sabia quando era ele): “E aí, Paulão?”

Meu pai leu um livro de Isaac Bashevis Singer, Breve Sexta-Feira, um dia antes de morrer. Minha mãe rezava todas as noites para que os anjos me protegessem em minhas noitadas de bar.

Meu pai foi abordado por um vendedor de doces com marcas de cobaltoterapia, e o homem me disse: “Menino, pode pegar os doces que você quiser. Seu pai salvou a minha vida!” Minha mãe foi abordada por uma ex-aluna: “D. Aracy, você foi a melhor professora que eu tive!”

Minha mãe se recusava a tomar banho no banheiro da República: “Eu não acredito que você viva numa pocilga dessas, meu filho!” Meu pai assistia a um filme japonês comigo em um pequeno cinema da Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo.

Minha mãe, em viagem aos Estados Unidos, tentava explicar ao guia americano que não queria fazer um passeio de helicóptero: “I don’t like to fly!” Meu pai contava suas histórias de morador da Casa do Estudante. Minha mãe acordava cedo para pegar três ônibus e dar aulas de História numa escola do Bairro do Limão.

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Meu pai lia o jornal na sala, bem cedinho, tomando café. Minha mãe fazia um chá de boldo para mim no Carnaval. Meu pai dizia, antes que eu saísse para um churrasco na casa do Marcelo Rocha: “Paulão, exercício da moderação!”.

Meu pai ia comigo ao Bar do Nonoca e misturava cerveja quente com cerveja gelada para não ter dor de garganta. Minha mãe tecia um casaco de crochê para minha namorada — e a namorada se tornou minha esposa e mãe do meu filho.

Meu pai conheceu a primeira netinha, que nasceu na primeira manhã depois do meu casamento. Minha mãe segurava meu filho no colo, depois da cerimônia de batismo. Meu pai me disse, no escuro da noite: “Paulão, se um dia eu faltar, você é que será o responsável pela família!”.

Minha mãe olhava para o Pedro e encontrava nele os traços de meu pai. Meu pai me convidou para um passeio em volta do lago, depois de sua última quimioterapia. Minha mãe rezava com o Padre Oswaldo, uma noite antes de morrer. Meu pai jogava sinuca, me vencia no xadrez, me ensinava a pescar. Minha mãe cantava no coral, passeava com a Rosângela, ninava o Pedro.

Tenho 55 anos, já ultrapassei a metade da minha vida; deve ser por isso que a Saudade me mandou lembrar da vida inteira. Mas como esta crônica é pequena para tanto amor!

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