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“Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua misericórdia.”
(Salmo 50)
Nasi, o vocalista da banda Ira!, declarou recentemente que não quer a presença de “bolsonaristas” em seus shows e disse ser contra a anistia aos presos políticos do 8 de janeiro. Em consequência, a banda teve shows cancelados em várias cidades.
O Ira!, assim como grande parte dos velhos ídolos musicais brasileiros, vive do passado — um passado morto. Quem faz parte da minha geração (nasci em 1970) sabe que os cantores de MPB e bandas de rock nacional antigamente eram os oráculos da mídia.
Nos anos 80 e 90, quando surgia algum assunto novo, os jornais corriam para saber o que pensavam Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Renato Russo, Cazuza, Lobão e outros menos votados, como Nasi, João Gordo e Arnaldo Antunes.
Muitos têm saudade desse tempo; acontece que esse tempo já passou. Ninguém mais quer saber o que esses caras pensam, da mesma forma que ninguém acredita mais na grande mídia.
E não é de hoje: mal envelheceram, envelheceram mal. Com raríssimas exceções — como os grandes Carlos Maltz e Elomar — tais artistas se tornaram sombra de si e não produzem mais nada. Na verdade, são ex-músicos. Limitam-se a cantar pela enésima vez (agora com a voz fraca e senil) os sucessos de 1985. É doloroso, é patético, é constrangedor.
Eles viveram a fama e agora tentam recuperar uma relevância que não existe mais. Trocaram a vida louca pela morte em vida. Eis a verdadeira razão da ira do Ira!
Temos que rezar por eles e por suas pobres almas. No entanto, muito além das iras mundanas, existe outro passado: aquele que nunca morre e nunca morrerá, porque já não pertence à dimensão do tempo.
Quando soaram as primeiras notas do Concerto n° 20 de Mozart, a pianista entrou em pânico. Em 1998, durante uma apresentação em Amsterdã, Maria João Pires, uma das mais aclamadas concertistas do mundo, viu-se de repente numa cena de pesadelo: diante de um público de 2 mil pessoas, não estava esperando tocar aquela peça. Baixou a cabeça, passou a mão pelo rosto (como que procurando certificar-se de que tudo aquilo não era um sonho) e dirigiu um olhar de súplica ao maestro:
— Eu pensei que era o Concerto n° 23!
Sem deixar de conduzir a orquestra, o regente diz:
— Você tocou este concerto na temporada passada. Acha que consegue?
Após um breve silêncio, Maria baixa novamente a cabeça e respira fundo.
— Vou tentar.
Cessam os dramáticos compassos da introdução do Concerto n° 20. Maria leva as mãos ao teclado e começa a tocar. Ao fim de 33 minutos, sem errar uma só nota, ela é ovacionada pelo público, pelos outros músicos e pelo maestro.
A história de Maria João Pires me faz lembrar uma passagem da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, quando o gênio musical austríaco era um adolescente de 14 anos.
No dia 11 de abril de 1770 — uma Quarta-Feira Santa como hoje —, o jovem Mozart e seu pai Leopold visitavam a Capela Sistina em Roma, onde acompanharam a apresentação do “Miserere”, obra musical sacra composta por Gregorio Allegri (1584-1652).
A famosa composição em nove partes e dois coros, com base no texto do Salmo 50, era apresentada apenas uma vez por ano, durante a Semana Santa, e a divulgação de sua partitura era proibida pelo Vaticano, sob pena de excomunhão.
Ocorre que o garoto Amadeus ficou tão fascinado pelo “Miserere” que, ao voltar para o hotel em que estava hospedado, transcreveu de memória a partitura da peça. Isso mesmo que vocês sete leram: Mozart conseguiu guardar na memória uma obra musical de 15 minutos.
Na Sexta-Feira da Paixão, Wolfgang e seu pai voltaram à Capela Sistina, onde o “Miserere” foi novamente apresentado. Mozart levou consigo ocultamente a partitura e corrigiu alguns trechos da transcrição.
Ao tomar conhecimento da façanha do jovem Mozart, o papa Clemente XIV, em vez de puni-lo com a excomunhão, decidiu condecorá-lo com o título de Cavaleiro da Ordem do Esporão Dourado, em reconhecimento à sua genialidade.
Em Motu proprio datado de 4 de julho de 1770, o pontífice afirma que o título se destinava a honrar “te, quem in suavissimo cymbali sonitu a prima adolescentia tua excellentem esse intelleximus (a ti, cuja excelência no suavíssimo som do cravo reconhecemos desde a tua mais tenra infância)”.
Como se explicam tais milagres da memória — o do jovem Mozart e da pianista Maria João Pires? Creio que a explicação se acha em três verbos: recordar, decorar e perdoar
Recordar vem do latim re (de novo) e cor (coração). Decorar tem uma origem semelhante: de cor (do coração). Perdoar deriva de per (completo) e donare (doar, oferecer).
Em sua brilhante trajetória artística, Maria João Pires vive a conjugar esses três verbos. Embora estivesse preparada para tocar o Concerto n° 23 — que é também esplêndido —, ela guardava em seu coração e em sua memória outros inúmeros tesouros musicais, inclusive o Concerto n° 20. Assim, a pianista portuguesa pôde oferecer ao público de Amsterdã esse dom precioso que ela domina por completo.
Foi registrado em vídeo o exato momento em que a pianista decidiu executar o concerto para o qual supostamente não estava preparada. Faz-nos pensar no próprio Wolfgang Amadeus apresentando sua obra ao público de Viena pela primeira vez, há 240 anos.
Sou um grande admirador de Mozart. (Aliás, quem não é? Acho que só o Henry Miller.) Mas, se precisasse escolher apenas uma peça entre sua maravilhosa obra musical, hesitaria entre o Réquiem (K. 626), a Grande Missa em Dó Menor (K. 427) e o Concerto n° 20 em Ré Menor (K. 466) — e acabaria escolhendo o terceiro.
O Concerto n° 20 que Maria João Pires guardou no coração e tão belamente executou é uma obra de altíssima dramaticidade, especialmente em seu primeiro movimento.
Mozart compôs a obra em 1785, em meio a dificuldades financeiras, enfrentando um período de poucas encomendas de óperas. Vindo de Salzburg, Mozart tentava se estabelecer como solista e compositor em Viena, capital do Império Austro-Húngaro.
O tom sombrio e tenso dos primeiros compassos do concerto — justamente aqueles que soavam enquanto Maria se angustiava ante a situação inesperada — refletem as agruras do compositor, que morreria com apenas 35 anos, deixando uma obra eterna.
Esse episódio da “troca de concertos” também me faz pensar na importância da memória para o destino de cada um. Quais são as palavras, os episódios, os atos, os pensamentos e as imagens que você carrega em forma de recordação? Você tem se preocupado em acumular dentro de sua alma o que existe de bom, belo e verdadeiro — ou acha que isso é irrelevante?
Penso que todos nós, de algum modo, somos chamados a fazer parte da Tribo dos Homens-Livro de “Fahrenheit 451”. Habitantes de um mundo em que a inteligência, a bondade e a beleza foram proibidas, essas personagens decoram as grandes obras do espírito humano, guardando-as como sementes de uma pátria realmente livre.
Tenho saudade da pátria, mas depois de velho descobri que essa saudade não se refere a nenhum tempo histórico, a nenhuma era dourada do passado, a nenhum senhor que me possa morrer.
Eu não quero voltar aos bons tempos; não quero ir ao show do Ira!; não quero voltar à infância, nem a adolescência, nem à juventude; não quero morar na República da Rua Humaitá nem frequentar o Araucana Café Bar ou o Clube da Esquina; não quero passar em um churrasco interminável nem escorar-me nas árvores e nos postes pela madrugada; não quero saber em quem os outros votaram; não quero poder nenhum. Quero apenas voltar para casa.
Nostalgia é a palavra que nos explica, para o bem e o mal. Sua origem está nos termos gregos nostos (regresso) e algo (dor); significa, portanto, a dor dos que tentam voltar para casa — como Odisseu, Camões e Frodo. Todos nós temos essa velha ferida, essa dor que clama por uma resposta, um mapa, uma senda.
Um dia, porém, percebemos que a casa para a qual queremos voltar não é deste mundo. É o Céu. Então, Deus aparecerá para nos perguntar:
— O que guardas no teu coração? Recordaste, decoraste, perdoaste?
Esteja preparado para responder com algo tão valioso quanto o Concerto n° 20 — e assim ser poupado da ira de Deus.
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Conteúdo editado por: Aline Menezes




