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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Memória

Debaixo da figueira: a fé e a coragem de um menino imigrante

Aos 7 anos, Antônio foi deixado no Brasil com o irmão, à mercê da miséria e da exploração. Mas sobreviveu. E por isso, hoje, eu existo. (Foto: Imagem criada utilizando OpenAI/Gazeta do Povo)

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“Antes que Filipe te chamasse, eu te vi quando estavas debaixo da figueira.”
(Jo 1, 48)

Antônio chegou ao Brasil no ano de 1896, vindo de Portugal com a família. Desembarcou em Belém do Pará com os pais, Tomás e Eugênia, um irmão mais velho e três irmãs pequenas. Tinha sete anos de idade.

Inicialmente, conseguiram, por intermédio de um primo de terceiro grau que havia imigrado uma década antes, um casebre nas cercanias do que hoje é o Mercado de Ver-o-Peso. Logo toda a família ― inclusive as meninas ― estava trabalhando numa barraca de peixes.

O cheiro forte da barraca, a viscosidade das escamas e os olhos arregalados dos peixes acompanhariam Antônio pela vida inteira, voltando à sua memória nos momentos mais inesperados.

Tomás e o primo de terceiro grau ― cujo nome Antônio fez questão de esquecer para sempre ― passavam o dia juntos, em conversas intermináveis, enquanto Eugênia e as crianças trabalhavam sem descanso na barraca. Ao final do dia, o primo lhes permitia ficar com os peixes que restavam.

Só comiam à noite, reunidos em torno de uma grelha nos fundos do casebre. Caíam exaustos sobre sacos de estopa, que lhes serviam de camas, e dormiam, crianças e adultos, todos juntos, até os primeiros sons da aurora amazônica.

Antônio era muito pequeno para entender o que estava acontecendo, mas certa manhã acordou com vozes enraivecidas. O pai e o primo discutiam na frente do casebre. No exato momento em que Antônio resolveu espiar a contenda, viu o parente estapeando o rosto de Tomás, que se calou.

O primo foi embora sem dizer uma palavra. Antônio se jogou rapidamente sobre um saco de estopa, fingindo dormir. Antônio entrou na casa e parou diante da mulher, que havia presenciado toda a cena, inclusive o despertar do filho. Ela se virou para o marido e disse:

― Isto aqui não é vida.

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Na semana seguinte, Tomás e Eugênia resolveram voltar para Portugal com as crianças. Tomaram a decisão assim que chegaram ao Ver-o-Peso e constataram que a barraca de peixes estava ocupada por outra família.

Tomás ainda quis discutir, mas depois ponderou: se fizesse isso, jamais teria condições de voltar para a casa. O primo, ainda que pérfido, era a sua única esperança. Tomás teria que humilhar-se ainda mais para salvar a família.

Antônio e o irmão brincavam na rua quando viram o pai saindo de casa à procura do primo. Seguiram-no secretamente. O parente morava numa casa pintada de azul, próxima a uma igreja muito bonita.

De longe, notaram que Tomás não foi convidado a entrar; o primo atendeu-o na porta da calçada. Conversaram por cinco minutos, se tanto: tempo suficiente para que Tomás unisse as mãos em súplica por duas vezes. Quando os meninos acharam que o pai iria se ajoelhar diante do parente, a discussão se encerrou.

Tomás obteve o seguinte acordo: o primo pagaria a viagem de volta da família para Portugal, mas deixaria os meninos no Brasil, até que eles pagassem, com trabalho, o valor das passagens dos pais e das irmãs.

Depois, se quisessem, Antônio e o irmão trabalhariam mais uns tempos para inteirar o valor de suas próprias passagens e poderiam voltar para a família.

Assim Antônio foi deixado aos sete anos de idade, sozinho com um irmão apenas dois anos mais velho, em um país grande e desconhecido, aos cuidados de um homem que havia estapeado seu pai.

Um dia, muitos anos depois, eu vi uma figueira em flor e me dei conta que foi à sombra de uma árvore igual àquela que Antônio e seu irmão se abrigaram na noite em que fugiram do primo. Dormiram sobre aquelas gigantescas raízes, que lhes formaram um leito estranhamente acolhedor, como os braços de uma descomunal ama de leite. 

Naquela noite, Antônio sonhou com o navio que o levaria para casa de seus pais. Quando acordou, havia uma imagem encostada no tronco da figueira: uma mulher com uma coroa na cabeça e um filho nos braços. Seu nome, Nossa Senhora de Nazaré.

Antônio Costa nunca mais voltou para Portugal. E eu só existo porque aquele menino sobreviveu: ele era meu bisavô.

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