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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Despedida

O último passeio do Cisco

(Foto: Rosângela Vale/Acervo familiar)

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“Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás.”
(Graciliano Ramos)

Durante algum tempo este cronista de sete leitores foi conhecido em Londrina como o “homem do cachorrinho”. Isso porque todas as manhãs eu passeava com meu vira-latas, o Cisco. Ele era um companheiro fiel e inseparável; logo ficou famoso não apenas no bairro, mas em toda a cidade, como personagem de minhas crônicas.

Todo mundo gostava do Cisco, embora não se pudesse dizer o mesmo sobre o seu dono. Dependendo das circunstâncias, o cronista do cachorro virava o cachorro do cronista.

Na verdade, qualquer coisa era pretexto para soltarem os cachorros em cima de mim. Lembro-me de uma estudante de jornalismo que, decepcionada com minhas opiniões políticas, procurou ridicularizar-me dizendo que eu não passava de um passeador de cachorro. Ora, pergunto eu, o que há de indigno nessa condição?

A caravana ladra, mas os cães passam. Cisquinho nos deixou na última sexta-feira, após 16 anos de muitos passeios, alegrias e companheirismo. Todos em casa o amavam; na prática, ele era um membro da família.

Cisco entrou em nossa vida numa noite chuvosa de sexta-feira, 10 de julho de 2009 exatamente o dia em que eu completava 39 anos. Naquele dia, Rosângela encontrou-o perdido e desorientado no meio da chuva; sem achar abrigo, ele ia e voltava no meio da avenida, correndo o sério risco de morrer atropelado. Rô decidiu resgatá-lo ou melhor, salvá-lo.

Cisco foi o meu mais inesperado presente de aniversário.

Eu estava conversando com minha mãe, na sala de casa, quando a Rô chegou carregando um animal de porte pequeno e pelo marrom. Tinha longas patas, desproporcionais em relação ao corpo, e orelhas muito grandes, que se levantavam ao ouvir os compassos da sinfonia de Haydn que estava tocando.

Devo admitir que Cisco era esquisito tão esquisito que, no primeiro momento, achávamos que poderia não ser cachorro. Seria ele um filhote de lobo, quati, raposa ou cachorro-do-mato? A dúvida foi logo desfeita quando ele começou a latir e abanar o rabo. Era um cachorro. Feio, mas cachorro. Depois, graças aos cuidados da Rô e da minha sogra Elia, ficou mais bonitinho.

O nome científico de sua espécie é Canis familiaris. Como sempre, o latim é perfeito para descrever a realidade

Mesmo antes de ganhar um nome, nosso cãozinho familiarizou-se conosco a ponto de ser difícil imaginar a casa sem ele.

Cisco chegou trazendo boas novas. Uma semana depois de resgatá-lo, Rosângela descobriu que estava grávida do Pedro. Ele acompanhou toda a gravidez com atenção; gostava de descansar a cabecinha sobre a barriga da gestante. 

Depois que Pedro nasceu, Cisco montava guarda ao pé do berço. Se o bebê começava a chorar, Cisco uivava para nos avisar. E assim ele acompanhou todas as alegrias, tristezas, emoções, trabalhos, conquistas, decepções, lutas, encontros e despedidas ao longo de nossas vidas.

Quando novo, Cisco gostava de brigar com outros cães, enfrentando mesmo aqueles que eram muito maiores que ele. Não tinha o menor senso de proporções. 

Demorou a acostumar-se com o espelho da sala, pois achava que ali havia outro cachorro disputando-lhe a primazia no lar. Mas adorava crianças e não mordia ninguém embora algumas vezes fingisse brigar comigo.

De todos que frequentavam a casa, ele exigia atenção e agrados. Seu cartão de apresentação era uma bolinha azul, que o acompanhou por muitos e muitos anos, e que ele colocava aos pés de todos que se aproximavam. Assim, ele fez amizade com a família e a vizinhança. Era conhecido em todo o bairro e, depois que começou a sair no jornal, em toda a cidade e até em outros lugares do país.

Cisco ganhou esse nome em um dos primeiros passeios que fizemos com ele, no jardim da Madre Leônia, quando uma senhora se aproximou e disse:

Que cachorro pequeno! Parece um cisquinho.

Meu último passeio com o Cisco foi feito exatamente no mesmo jardim de nossa santa londrinense. Cisco já estava muito fraco e não conseguia andar. Tive de carregá-lo no colo. Tão leve que parecia um cisquinho. 

Os cães aparecem na vida de santos como São Francisco, Santo Antão e São Roque; figuram na belíssima passagem do mendigo Lázaro, ao lamber as feridas do pobre homem; estão presentes até na história da filosofia, ao lado de Diógenes, o pensador que vivia em um barril com eles. 

Na literatura, temos os cães dos contos de Tchekhov, a inesquecível Baleia de Graciliano Ramos, o lobo Caninos Brancos de Jack London e muitos outros. Há 30 anos, Carlos Heitor Cony publicou uma antológica crônica sobre a morte de sua querida cadelinha Mila. Por que este cronista de sete leitores não escreveria sobre o Cisco, não é mesmo?

Sim, eu sei que cães embora tenham vida e não sejam bonecos reborn não possuem uma alma imortal e não devem substituir seres humanos. Mas creio que Deus não deixará de olhar com ternura para essas pequenas criaturas que nos trouxeram alegria.

Agora que você foi para o outro lado do espelho, meu amiguinho, eu só posso agradecer por tantos bons momentos. Obrigado, Cisco, por ser o companheiro dos meus passos. Pensando bem, eu nunca deixarei de ser o homem do cachorrinho.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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