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“Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás.”
(Graciliano Ramos)
Durante algum tempo este cronista de sete leitores foi conhecido em Londrina como o “homem do cachorrinho”. Isso porque todas as manhãs eu passeava com meu vira-latas, o Cisco. Ele era um companheiro fiel e inseparável; logo ficou famoso não apenas no bairro, mas em toda a cidade, como personagem de minhas crônicas.
Todo mundo gostava do Cisco, embora não se pudesse dizer o mesmo sobre o seu dono. Dependendo das circunstâncias, o cronista do cachorro virava o cachorro do cronista.
Na verdade, qualquer coisa era pretexto para soltarem os cachorros em cima de mim. Lembro-me de uma estudante de jornalismo que, decepcionada com minhas opiniões políticas, procurou ridicularizar-me dizendo que eu não passava de um passeador de cachorro. Ora, pergunto eu, o que há de indigno nessa condição?
A caravana ladra, mas os cães passam. Cisquinho nos deixou na última sexta-feira, após 16 anos de muitos passeios, alegrias e companheirismo. Todos em casa o amavam; na prática, ele era um membro da família.
Cisco entrou em nossa vida numa noite chuvosa de sexta-feira, 10 de julho de 2009 — exatamente o dia em que eu completava 39 anos. Naquele dia, Rosângela encontrou-o perdido e desorientado no meio da chuva; sem achar abrigo, ele ia e voltava no meio da avenida, correndo o sério risco de morrer atropelado. Rô decidiu resgatá-lo — ou melhor, salvá-lo.
Cisco foi o meu mais inesperado presente de aniversário.
Eu estava conversando com minha mãe, na sala de casa, quando a Rô chegou carregando um animal de porte pequeno e pelo marrom. Tinha longas patas, desproporcionais em relação ao corpo, e orelhas muito grandes, que se levantavam ao ouvir os compassos da sinfonia de Haydn que estava tocando.
Devo admitir que Cisco era esquisito — tão esquisito que, no primeiro momento, achávamos que poderia não ser cachorro. Seria ele um filhote de lobo, quati, raposa ou cachorro-do-mato? A dúvida foi logo desfeita quando ele começou a latir e abanar o rabo. Era um cachorro. Feio, mas cachorro. Depois, graças aos cuidados da Rô e da minha sogra Elia, ficou mais bonitinho.
O nome científico de sua espécie é Canis familiaris. Como sempre, o latim é perfeito para descrever a realidade
Mesmo antes de ganhar um nome, nosso cãozinho familiarizou-se conosco a ponto de ser difícil imaginar a casa sem ele.
Cisco chegou trazendo boas novas. Uma semana depois de resgatá-lo, Rosângela descobriu que estava grávida do Pedro. Ele acompanhou toda a gravidez com atenção; gostava de descansar a cabecinha sobre a barriga da gestante.
Depois que Pedro nasceu, Cisco montava guarda ao pé do berço. Se o bebê começava a chorar, Cisco uivava para nos avisar. E assim ele acompanhou todas as alegrias, tristezas, emoções, trabalhos, conquistas, decepções, lutas, encontros e despedidas ao longo de nossas vidas.
Quando novo, Cisco gostava de brigar com outros cães, enfrentando mesmo aqueles que eram muito maiores que ele. Não tinha o menor senso de proporções.
Demorou a acostumar-se com o espelho da sala, pois achava que ali havia outro cachorro disputando-lhe a primazia no lar. Mas adorava crianças e não mordia ninguém — embora algumas vezes fingisse brigar comigo.
De todos que frequentavam a casa, ele exigia atenção e agrados. Seu cartão de apresentação era uma bolinha azul, que o acompanhou por muitos e muitos anos, e que ele colocava aos pés de todos que se aproximavam. Assim, ele fez amizade com a família e a vizinhança. Era conhecido em todo o bairro e, depois que começou a sair no jornal, em toda a cidade e até em outros lugares do país.
Cisco ganhou esse nome em um dos primeiros passeios que fizemos com ele, no jardim da Madre Leônia, quando uma senhora se aproximou e disse:
— Que cachorro pequeno! Parece um cisquinho.
Meu último passeio com o Cisco foi feito exatamente no mesmo jardim de nossa santa londrinense. Cisco já estava muito fraco e não conseguia andar. Tive de carregá-lo no colo. Tão leve que parecia um cisquinho.
Os cães aparecem na vida de santos como São Francisco, Santo Antão e São Roque; figuram na belíssima passagem do mendigo Lázaro, ao lamber as feridas do pobre homem; estão presentes até na história da filosofia, ao lado de Diógenes, o pensador que vivia em um barril com eles.
Na literatura, temos os cães dos contos de Tchekhov, a inesquecível Baleia de Graciliano Ramos, o lobo Caninos Brancos de Jack London e muitos outros. Há 30 anos, Carlos Heitor Cony publicou uma antológica crônica sobre a morte de sua querida cadelinha Mila. Por que este cronista de sete leitores não escreveria sobre o Cisco, não é mesmo?
Sim, eu sei que cães — embora tenham vida e não sejam bonecos reborn — não possuem uma alma imortal e não devem substituir seres humanos. Mas creio que Deus não deixará de olhar com ternura para essas pequenas criaturas que nos trouxeram alegria.
Agora que você foi para o outro lado do espelho, meu amiguinho, eu só posso agradecer por tantos bons momentos. Obrigado, Cisco, por ser o companheiro dos meus passos. Pensando bem, eu nunca deixarei de ser o homem do cachorrinho.
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Conteúdo editado por: Aline Menezes




