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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Confissões de um cronista

Olavo e a fonte da realidade: uma história de conversão

No ensaio escrito sobre a metafísica de Olavo, Bruno Fontana fala do perdão como lei do universo. (Foto: Tatiana Alvarez; Mauro Ventura)

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Em uma tarde de 1988, o cheiro de diesel e o balanço monótono do ônibus da linha Vila Nova eram os companheiros regulares da minha volta do campus universitário para casa. Abri ao acaso um livro de René Descartes e meus olhos pousaram sobre este trecho das “Meditações Metafísicas”:

“Suporei que não existe aquele Deus, que é muito bom e que é a fonte soberana da verdade, mas que um certo gênio do mal, não menos astuto e enganador do que poderoso, empregou toda a sua diligência em mim para enganar. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas que vemos, são apenas ilusões e enganos, que ele usa para surpreender a minha credulidade”.

Enquanto o ônibus demorava no congestionamento da Paulicéia, reli aquelas palavras várias vezes. Sentia a imagem de um universo onde céu, ar, terra, núcleos, figuras, pais, mães, filhos — tudo o que vemos e experimentamos — eram apenas ilusões e enganos. 

Descartes, com sua bifurcação radical entre realidade e pensamento, que tanto influenciou a cosmovisão moderna, plantou em minha mente a semente de uma dúvida diferente de todas as outras: a dúvida hiperbólica. A paisagem urbana, as vozes dos passageiros, o próprio livro em minhas mãos... nada parecia mais tão real, tão indubitável. O gênio maligno havia, de fato, empregado toda a sua diligência contra mim.

Onze anos depois, às vésperas de entrar na casa dos 30, eu me vi em um cenário completamente diferente. Estava diante da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, Minas Gerais.

A fachada ainda resistia, mas por dentro tudo era destruição. O fogo já tinha passado, mas o cheiro das cinzas tomava conta do ar como um lamento. Parado ali, eu entendi — como quem entende uma sentença que não queria ouvir — que minha vida era uma grande mentira.

Aquela igreja histórica — suas paredes enegrecidas, suas estacas rachadas e fumegantes, seu altar imerso nas trevas e na fumaça — era o reflexo da minha alma: um templo devastado de dentro para fora. Eu era a única testemunha de minha própria perdição, a única sentinela de meu abismo. 

Pouco tempo depois, li um artigo chamado “Sem Testemunhas”, de Olavo de Carvalho. O professor dizia que as verdades mais importantes da vida são aquelas em que só você e Deus estão presentes. Verdades que não se discutem — se suportam.

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Foi nesse texto que percebi que havia algo mais verdadeiro que minha mentira, algo mais concreto que as cinzas daquela igreja: a realidade do ser

Foi assim, com aquela igreja e aquele artigo, que começou minha conversão. Não a religiosa — ainda não. A conversão ao real. Àquilo que arde, mas não engana.

Em 2025, no dia do aniversário de Olavo, encontrei mais um capítulo dessa história. Li o ensaio de um jovem chamado Bruno Fontana sobre a metafísica de Olavo. Curiosamente, Bruno se formou na mesma faculdade da USP que eu abandonara em 1988, fugindo do gênio maligno. 

Em seu texto devastador como um incêndio, Bruno falava do perdão como lei do universo. Do milagre como clarão que ordena o caos. E da sede — sim, da sede — como critério silencioso para começar a pensar. Não era um texto acadêmico. Era a expressão de alguém que tinha a sede do real. Um menino no deserto que encontrou oásis — e, em vez de beber tudo sozinho, escreveu para outros sedentos.

A metáfora dele me atingiu como uma lembrança íntima: “A experiência que a humanidade pré-cristã tinha de Deus era como caminhar num deserto à procura de água e encontrar só miragens. Cristo foi a fonte. O fim da sede”.

Quando li isso, pensei: esse rapaz entendeu. E mais que entendeu — ele radicalmente intuiu. O espanto e a sede estavam juntos naquela prosa. Ele não estava apenas citando Olavo. Ele estava bebendo da sua fonte.

Para quem mergulhou nas aulas, nos livros e na personalidade do Olavo, há um momento preciso — quase sempre solitário — em que ele faz você amar a verdade. Sem arrogância. Sem proselitismo. Sem intimidação. Apenas amando tanto a verdade, com tamanha ferocidade e humildade, que você é arrastado junto. 

Por isso, muitos de seus alunos voltaram para Deus. Porque, antes de falar de fé, Olavo falava da realidade. Antes de citar a Igreja, ele mostrava o caos. E quando você via o caos com clareza, começava a procurar a ordem — e acabava de joelhos.

Bruno não é exceção. Ele é testemunha. Não de um argumento, mas de um impacto. O mesmo impacto que senti diante da igreja queimada, ele sentiu diante do deserto do mundo. A diferença é que ele soube escrever a sede. E só escreve assim quem foi tocado por alguém que ensinou que o real não é negociável. 

Olavo não nos deu um método. Ele nos deu olhos. E, com os olhos, uma direção.

Toda filosofia começa com um espanto, ensinava Aristóteles. Olavo nos ensinou a importância da sede de saber

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Quando os dois — o espanto de ver e a sede de saber — se encontram numa alma sincera, nasce a filosofia verdadeira. Bruno escreveu com os dois.

Vivemos num tempo em que citar virou substituto de pensar. Muita gente decora frases do Olavo, mas nunca teve sede. Nunca suou diante de uma mentira íntima. Nunca ficou espantado com a presença do ser. Nunca se sentiu um sobrevivente, como Olavo sabia.

A sede é critério. O espanto é o clarão. Só escreve de verdade quem já atravessou o deserto. E reconhece a água — mesmo quando ela vem da pena de um menino. 

O nome Olavo significa “o sobrevivente”. E ele foi. Sobreviveu à ignorância acadêmica, ao ódio político, ao abandono espiritual, à traição dos oportunistas, às agruras do passado — e sobrevive ainda em cada texto que nos faz voltar a Deus. 

Bruno vem do germânico “brun”, que quer dizer “marrom”, “escuro”, “protegido”. Talvez por isso ele escreva como quem já atravessou uma noite — e resolveu acender uma fogueira para os que vêm atrás. 

E Paulo, nome de apóstolo, de perseguidor que virou pregador, de homem que caiu do cavalo para se levantar como anunciador. Três nomes. Três caminhos. Um mesmo gesto: conversão. Não apenas à fé — mas à realidade. Ao real que arde, que salva, que chama pelo nome.

Bruno não escreveu um texto. Ele nos mostrou uma fonte — que, ao mesmo tempo, é antiquíssima e novíssima. E quem já teve sede da verdade sabe reconhecer quando a fonte é pura. Não mais o cheiro do diesel, nem a igreja incendiada; não mais o gênio maligno, nem a alma em pedaços. Agora estamos nas mãos do perdão e do milagre — e essa fonte jorrará para a vida eterna.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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