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(Segunda parte do conto Ainda que eu ande no vale das sombras)
Jorge e Ana moravam em um coletivo de habitação no largo antigamente chamado Santa Cecília, ao lado da igreja transformada em Unidade Paulo Freire. Quando a porta da célula se abriu, ele entrou em silêncio.
Percebeu que a luz da tela estava ligada e que Ana, com fones de ouvido, assistia a algum programa. Quando viu quem era o apresentador do programa, trincou os dentes. Ela estava acompanhando uma aula clandestina do tal Padre Jonas, famoso cristofascista.
― Que é isso, Ana? Esse bandido de novo?
Tirando os fones, a mulher respondeu com um sorriso que desarmou Jorge:
― Ele não é bandido, é só um homem que fala coisas bonitas.
― Você sabe muito bem que pode ser presa e eu posso perder o emprego se alguém descobrir que você vê essas coisas.
― Jorge, ninguém mais entra neste apartamento, só eu e você. As janelas estão fechadas, a internet está desligada, eu estava usando fones. E, logicamente, é um vídeo gravado.
― Mas desliga isso, Aninha. Hoje é um dia de boas novas.
***
Ana ficou contente com o sucesso da reunião. Embora não gostasse do Partido e menos ainda do secretário-geral, alegrava-se sinceramente com o sucesso do marido.
À noite, contemplando o sono suave de Ana, Jorge pensou que uma das grandes qualidades da mulher era ser capaz de um amor incondicional e independente das circunstâncias.
As estratégias do Partido para ela não significavam nada. Havia uma única coisa realmente importante: que Jorge estivesse feliz.
Jorge olhava para a mulher e se perguntava como era possível esse desinteresse total pela política, o que antigamente chamavam de alienação.
Mas o termo era completamente inadequado para definir Ana: seu distanciamento das coisas do poder não lhe impedia uma proximidade comovente com as coisas da vida.
O modo como ela conversava com os velhos, com as crianças, com os mendigos, até com os fascistas... A paciência com que ela ouvia os lamentos e as reclamações da vizinha, ex-professora da universidade antigamente chamada USP, cujo marido foi preso durante o Expurgo dos Tucanos... Ana, você não existe.
E, no entanto, Deus existia para Ana. Dentro de cada pessoa havia uma chama, por ela referida como Espírito Santo, que conferia até ao mais desgraçado dos indivíduos ― um miliciano, um negacionista, um genocida ― uma dignidade irremovível.
― Perdão, perdão, perdão ― Jorge certa vez a ouvira dizer baixinho.
Cedo, ainda na época do namoro, Jorge descobrira que com ela não funcionavam as habituais críticas ao fundamentalismo cristão; ela simplesmente as admitia e pedia perdão.
Deixar que Ana assistisse aos vídeos do Padre Jonas ― desde que tomadas as devidas precauções ― era um preço muito baixo a se pagar por viver com uma mulher tão encantadora.
***
Três dias depois, ao abrir a sua caixa de criptomensagens, Jorge respirou fundo. Antes de uma nova missão, ele sempre sentia um leve travo de insegurança, mas se conhecia o suficiente para saber que passaria a partir do momento em que ele começasse a operar.
Operar: esse verbo era fundamental na carreira de Jorge dentro do Partido. Ele sabia que os companheiros de Diretório viviam usando a mesma frase: “O Jorginho opera”.
Por vias indiretas, soube que o próprio Zé já pronunciara as três palavras mágicas numa plenária do Coletivo Supremo.
A mensagem por vídeo era sucinta. Jorge não viu na tela o mesmo Zé que encontrara vis-à-vis no comitê da cidade antigamente chamada São Paulo; quem aparecia agora era o Secretário-Geral do Partido e membro do Coletivo Supremo, temido pelo próprio Presidente Deimos, conhecido globalmente, íntimo do Presidente Deng.
E a missão que ele deu a Jorge era estranha, para dizer o mínimo.
***
O prédio ficava numa parte sombria da cidade, a praça antigamente chamada Roosevelt. Caía uma chuva fina, molha-bobo. O horário da reunião era bastante incomum: 6h09 da manhã ― escrito exatamente assim, como um horário de trem alemão.
Era um prédio sórdido, inteiramente pichado com vários slogans dos Comandos de Luta Antifascista, dentre os quais um se destacava: QUEIMEM OS CRISTÃOS!
Antes de sair de casa, Jorge percebera que Ana estava rezando o terço escondido, como fazia todas as manhãs. Por trás da porta, com seu ouvido de militante, escutou-a pronunciando uma frase enigmática: “Meu Criador, meu Salvador, meu Consolador”.
Jorge não pôde deixar de pensar em Ana quando viu a imensa exclamação anticristã, pichada com tinta vermelha. Se um dia os garotos do Comando descobrissem que a esposa de um militante do Partido rezava o terço, isso certamente causaria problemas colossais para Jorge.
Talvez nem o Secretário-Geral pudesse salvá-lo de um julgamento público e da expulsão sumária. Quanto à Ana, o que aconteceria com ela ao ser removida para um Centro Marielle Vive?
Mas Jorge era um operador disciplinado, e afastou esses pensamentos tão logo chegou ao endereço procurado. O prédio de seis andares, construído nos anos 70, situava-se exatamente no centro da praça, totalmente ocupado por consumidores de substâncias recreativas.
Uma garota de cabelo azul, com os seios à mostra e orelhas de elefante, chorava compulsivamente, de cócoras no meio-fio.
“Se a Ana estivesse aqui, iria conversar com ela”, pensou Jorge, antes de mostrar o QR-code na entrada do prédio.
A porta se abriu automaticamente. Na penumbra do hall de entrada, havia uma mesa, e atrás da mesa uma mulher extraordinariamente gorda dormia e roncava alto. Para surpresa de Jorge, a porteira despertou e disse em voz tonitruante, enquanto ele se dirigia ao elevador:
― Você está errado. A Sociedade não fica no sexto andar. É no subsolo.
Disse, e imediatamente voltou a dormir e roncar. Na parede, dois metros acima da cabeça da gorda, um relógio de ponteiros marcava 6h09.
“Estou atrasado”, pensou Jorge ― e abriu a porta do elevador. Apertou o botão onde se lia SS. O elevador desceu dois andares e parou diante de um corredor escuro, em que as luzes se acendiam conforme Jorge caminhava. Havia apenas uma porta, ao fundo do corredor.
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Antes que Jorge tocasse a campainha, a porta se abriu e apareceu um tipo magro, macilento, com os cabelos cortados à escovinha e óculos de aros pretos e lentes grossas. O sujeito vestia um paletó marrom de camurça e calças azuis com pregas. O interior do apartamento subterrâneo era banhado por uma luz artificial amarela. Diante do olhar interrogativo, Jorge pronunciou a senha:
― Solve et coagula.
O homem fez um gesto com a cabeça para que Jorge entrasse. Para surpresa de Jorge, o homem estava sozinho.
― Eu pensei que teríamos uma reunião. Os outros estão atrasados?
― Não. Hoje seremos somente eu e você.
― Você é o Sá?
O homem demorou um pouco para responder.
― Correto.
― Gostaria de conhecer um pouco mais sobre a Sociedade. Admiro o trabalho de vocês.
― Não precisa perder seu tempo com bajulações, Jorge. Sabemos exatamente por que você está aqui. Quer recrutar alguns dos nossos, não? Ficamos lisonjeados. Somos apoiadores sinceros do Partido. Companheiros de viagem, para usar um velho jargão.
Sá caminhou alguns passos e convidou Jorge a sentar diante de uma escrivaninha, sobre a qual jazia um livro de encadernação antiga.
Na parede de trás, iluminada fracamente por um abajur, havia um polígono e um crucifixo invertido
― O equívoco que vocês cometem é achar que nós não acreditamos nEle. Ao contrário do que vocês pensam, Ele existe! A diferença é que nós o chamamos de Inimigo.
Sá parou por um instante e colocou a mão esquerda, nodosa e cinzenta, sobre a capa do livro.
― Para chegar até aqui, você certamente deve ter visto os noiados da praça. Pense só, Jorge. O Inimigo criou cada um deles e os colocou aqui. A vida desses vermes é um pesadelo sem fim: sofrimento, êxtase, doença, morte. O Inimigo é um sádico; essas criaturas desgraçadas são as Suas cobaias.
Jorge sentiu que deveria dizer alguma coisa.
― Eu trabalhei alguns anos com os noiados da Craco. De certo modo, você tem razão. Quase ninguém se salva ali. Mas eu vi duas ou três exceções.
― Aposto que se converteram, esses dois ou três.
― Sim.
― Pois foram esses os mais desgraçados, Jorge. Escolheram ser escravos. Não há pior forma de escravidão que servir ao Inimigo!
Sá disse a última frase com um ódio que Jorge poucas vezes vira na vida; talvez apenas nas sessões de julgamento dos líderes negacionistas, muito tempo atrás.
― Você viu a pichação do prédio?
― Queimem os cristãos? Sim, não há como não perceber.
― Pois fui eu que mandei fazer, Jorge. Na semana passada. Sabe quem foi a pichadora? A menina de cabelo azul, que você viu chorando na sarjeta.
Sá coçou a orelha, passou a mão sobre a boca, soltou um leve suspiro.
― Sabe por que ela estava chorando? É que ontem morreu o macho dela. O habitual: morreu por dívida de pedra, registraram como covid. Quando o Inimigo mata um desses, é o Seu único momento de compaixão. Logo logo a cabelinho azul segue a mesma trilha. Agora, me diga uma coisa, Jorge: para quem eu mandei fazer aquela mensagem?
― Não faço ideia.
― Faz ideia, sim. Aliás, você sabe perfeitamente. Aquela mensagem foi direcionada para um velho militante do Partido. Veja se não é ridículo: o cara acha que pode esconder o fundamentalismo de sua mulher...
Nesse momento, Sá riu pela primeira vez. E Jorge então percebeu que os dentes do sujeito eram exatamente iguais aos de Zé: uma fileira de triângulos isósceles amarelos, podres, irregulares. A boca de alguém que usou crack por sete anos.
Sá levantou-se abruptamente e estendeu a mão nodosa para seu visitante. A reunião estava encerrada. Com estranha gentileza, conduziu Jorge até a porta de saída. Tendo colocado a mão sobre o ombro esquerdo de Jorge, sorriu com os dentes triangulares:
― A sua mulher vai morrer em um mês.
A porta fechou-se na cara de Jorge. Escorando-se na parede e tateando no escuro ― a iluminação automática não funcionou ―, ele conseguiu chegar até o elevador. Na portaria do prédio, o relógio ainda marcava 6h09, mas a gorda não estava mais lá: em seu lugar, dormia e roncava a moça de cabelos azuis.
Conteúdo editado por: Aline Menezes




