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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Memórias

Saudades de Maria, saudades do Céu

Vó Maria, dona de um grande coração. (Foto: Acervo familiar/Paulo Briguet)

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Mais uma vez, peço licença aos meus sete leitores para deixar de falar da loucura política e me dedicar àquilo que realmente importa na vida: a própria vida. 

O grande escritor judeu-polonês Isaac Bashevis Singer disse numa entrevista: “Quando morre uma pessoa que é próxima de você, ela se distancia; com o passar do tempo, ela se torna mais próxima. Depois de muitos anos, chega um momento em que você está quase vivendo com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia está mais próxima de mim agora do que estava na época da minha juventude”.

Os anos vão passando e a cada dia eu confirmo que Singer estava coberto de razão. Faz exatamente 20 anos que perdi a minha amada Vó Maria — e parece que ela está ao meu lado.

Para que vocês possam ter uma ideia de quem era minha avó, conto-lhes dois pequenos episódios.

O primeiro é da minha infância. 

Na casa da Brigadeiro Galvão, na Barra Funda, onde passei meus primeiros Natais, havia um corredor que levava da sala de estar à cozinha. Na época, parecia-me um longo corredor; é provável que não passasse dos cinco metros. Pois foi nesse corredor que um dia eu disparei com toda a velocidade permitida pelos meus três anos e esborrachei a testa na ponta da mesa de fórmica da cozinha.

Vó Maria ficou tão brava, mas tão brava, e tão compadecida pelo choro do neto, que pegou uma serra e cortou a ponta da mesa. Por alguns anos, aquela mesa de ponta serrada ficou ali, como um símbolo do que acontecia com aqueles que machucavam os netos da Vó Maria.

O segundo episódio é da minha fase adulta, quando ela já estava bem velhinha.

Um dia, sem querer, Maria derrubou um copo d’água sobre alguns impressos que estavam sobre a mesa e chorou por acreditar que os papéis estavam perdidos.

— É o seu trabalho, filho! Eu estraguei o seu trabalho! 

Com alguma dificuldade, expliquei que não havia problema, porque os textos estavam guardados na memória do computador.

Essa era Maria, meus sete amigos. A melhor avó que um neto poderia ter; a Maria que cuidou de mim com carinho, sabedoria e amor incondicional

Ela foi a minha segunda mãe, e duas vezes mãe; que era dona de um coração maior que o mundo, muito maior do que o poeta imaginava.

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Maria nasceu no dia 30 de agosto de 1918, em Três Lagoas, filha de Antônio Costa, maquinista de trem, o menino português que aos sete anos de idade fora deixado sozinho no Brasil, e de Ambrosina Nunes Costa, a Mãe Mulata, mineira descendente de índios e caboclos.

Desde pequena, Maria teve muitos problemas de saúde. Contraiu tétano; quase morreu no parto de minha mãe; e, aos 30 anos, desenganada pelos médicos, um milagre a salvou. Mesmo com os padecimentos físicos que a acompanharam por décadas, era uma mulher alegre, trabalhadora, cheia de vitalidade e entusiasmo. Seus olhos claros irradiavam uma intensa vontade de viver.

Durante os tempos de pobreza, em São Paulo, deixava de comer bife para que o marido e o irmão pudessem se alimentar melhor antes de sair para o trabalho. Não havia carne para todos, então Maria dizia:

— Eu já comi, não estou com fome.

Desta época ficou o seu costume de jamais jantar. Limitava-se a tomar uma xícara de café com leite e comer um pão com manteiga sem o miolo. O miolo ela gostava de deixar para os netos.     

Era devota de Nossa Senhora Aparecida, a quem rezava todos os dias, nas horas felizes e nas horas difíceis. Tenho em minha mesa de trabalho a imagem da Padroeira que pertencia a ela. Lembro-me de sua voz rezando baixinho no silêncio do quarto, de manhã. (Foi assim que naquele dia ela, sem querer, derrubou o copo d’água sobre meus rascunhos.)

Em grande parte, foram as orações diárias da Vó Maria que me fizeram voltar para a Igreja. Suas preces mantiveram a centelha de fé que ainda existia debaixo das cinzas de seu neto ateu. Graças a ela, eu posso dizer hoje, não ao mundo, mas aos meus sete leitores, que o meu amor por ela é muito mais forte que a morte, e que Deus é a fonte desse amor.

Certa vez, quando estávamos na varanda, em um dia igual a hoje, Maria olhou para o céu de Londrina, com aqueles olhos verdes e puros, e perguntou-me:

— Filho, é lá que vivem os santos e os anjos?

Hoje, Maria sabe a resposta. E eu sinto saudades dela, como sinto saudades do Céu.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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