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“E de repente ficamos mais gentis,/ mais ternos, guiados por seu sorriso,/ anjo sorridente, figura que pode sentir (...)”
(Rainer Maria Rilke)
Minha ideia hoje era escrever uma crônica política. O cenário estava pronto para falar sobre os personagens de sempre, que vocês sete conhecem tão bem: Lula, Moraes, Bolsonaro, Trump. Mas a vida tinha outros planos para a minha pena.
Quando, pelo retrovisor do Uber, vi o sorriso do Seu Lourival, no mesmo semáforo da Avenida Higienópolis, perto do Lago Igapó, mudei de ideia. E resolvi escrever sobre ele.
Todos os dias, quando passo por aquela esquina, o seu sorriso renova minha fé, minha esperança, minha caridade. Seu Lourival vende bijus no sinaleiro. Esteja frio ou quente, faça sol ou haja céu nublado, ele recebe todos os passantes do dia com o mesmo sorriso franco.
Não é um sorriso imposto, de quem espera alguma coisa em troca. Não é um sorriso de vaidade, nem de ambição, nem de servilismo. É um sorriso, apenas. A alegria de um homem sorrir para quem passa.
Dentre as características que diferenciam os homens dos outros seres vivos — a possibilidade de contemplar o horizonte, o hábito de comer com talheres, a vontade de tomar remédios, o costume de perguntar “É débito ou crédito?”, a oração angélica, as crônicas de Dino Buzzati, os poemas de Rilke, os contos de Bernard Malamud e as sinfonias de Beethoven —, destaca-se o sorriso.
E, dentre os sorrisos, destaca-se o sorriso do Seu Lourival. Costumava vê-lo quando saio de manhã para passear com o Cisco. Agora o Cisco não está mais aqui, mas eu e Seu Lourival continuamos firmes.
Cedinho, ele está lá, a simpatia em pessoa, passeando com seus bijus por entre os carros. Há alguns anos, na primeira em que escrevi sobre ele no jornal, um dos passantes comentou:
— Tá famoso, hein, Seu Lourival?
A resposta veio rimada:
— A gente não merece, mas agradece.
Essa simplicidade, essa gratidão genuína, é a marca de um homem que, se não é um anjo alado, é, sem dúvida, um anjo do cotidiano, com os pés fincados no asfalto e as mãos oferecendo mais do que bijus.
Ele não vende bugigangas, ele vende alegria. Ele é o próprio símbolo de uma cidade que há 90 anos acolhe os forasteiros, transformando-os em pés-vermelhos desde criancinhas
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Quando cheguei aqui, há 30 anos, foi esse sorriso que encontrei nas pessoas.
Anos atrás Seu Lourival foi assaltado. Ele próprio deu a notícia a um amigo que estava passando:
— Tudo bem, seu Lourival?
— Tudo bem. Uns ladrões entraram lá em casa, mas tudo bem.
— Nossa! Levaram muita coisa?
— Não tinha muita coisa pra levar. Mesmo assim, eu tinha que gastar 800 reais para colocar uma cerca elétrica. Fazer o quê, né, amigo? Trabalhar...
O mais impressionante, diz meu amigo, é que o vendedor de bijus contornou essa história sorrindo, sem nenhum traço de amargura ou ressentimento no rosto.
Os ladrões ficaram na casa do Seu Lourival, obrigaram-no a gastar 800 reais para se protegerem, mas não conseguiram levar aquilo que ele tem mais significativo: a alegria.
Por trás desse sorriso existe uma história de fé, sofrimento e superação. Alagoano de Maceió, Lourival migrou para o Sul com apenas 17 anos, já casado com Sebastiana.
Há exatamente meio século, em 17 de julho de 1975, a geada negra destruiu todos os cafezais do Paraná, inclusive aquele em que nosso amigo trabalhava.
Lourival continuou labutando na roça, plantando arroz e feijão. Durante um tempo, ele e a mulher Sebastiana moraram em um barraco de lona. Mesmo diante do desânimo da mulher, Seu Lourival sorriu:
— Deus vai nos ajudar e a vida vai melhorar, Bastiana.
Em Londrina, trabalhou como servente de pedreiro e catava papel. Certo dia, aproximou-se com seu carrinho de umas caixas de papelão. Quando as estava recolhendo, uma mulher abriu a janela de uma casa grande e gritou:
— Devolve isso aí!
Aquele grito calou fundo em Lourival. Foi um dos poucos momentos da vida em que ele não sorriu. Chegou em casa e disse a Sebastiana:
— Nunca mais vou catar papel.
Mesmo passando fome e dificuldades imensas, Lourival jamais cogitou roubar, atacar ou enganar alguém. A fé e o trabalho sempre o conduziram pelo caminho certo.
Deus colocou alguns anjos na vida de Lourival, como a Irmã Margarida, que o ajudou na construção de sua casa, e o Dr. Wilson, que com quatro cirurgias corrigiu um problema no seu pé direito, deformado pela paralisia infantil.
A missão do anjo dos bijus, no entanto, não se restringe a sorrisos. Certo dia, no semáforo, ele ofereceu biju a uma jovem senhora que parecia triste, deprimida. O vendedor de bijus oferecido para ela, indicado as duas crianças no banco traseiro do carro e disse:
— Você não pode cair em depressão, moça. Depois quem é que vai cuidar dessas crianças?
Passados alguns dias, a moça voltou e disse:
— Obrigada, Seu Lourival. Você salvou minha vida.
— Não fui eu não, moça. Foi Jesus. Com Ele no coração, tudo fica melhor.
Esse homem, que diariamente entoa seu inconfundível bordão — Bom dia, bom dia, bom dia! Olha o bijuuuu... — é um sinal vivo de que a vida é um doce presente de Deus.
Para mim, e para os meus sete leitores fiéis, Seu Lourival é a prova de que anjos, às vezes, vendem bijus e têm um sorriso que vale mais que ouro. Por sinal, quanto é que custa a biju?
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Conteúdo editado por: Aline Menezes




