Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

De Caio Prado Jr. à escola de samba

Arte e educação para odiar o Brasil

imperador decapitado academicos do tucuruvi carnaval
O imperador Dom Pedro II decapitado, em carro alegórico da escola de samba paulistana Acadêmicos do Tucuruvi. (Foto: Sebastião Moreira/EFE)

Ouça este conteúdo

“Reescrever a história burguesa em linguagem marxista [...] é como reescrever uma sinfonia de Haydn com o ressoar dominante de um tambor, de modo que tudo fica permeado por um tom premonitório de catástrofe, e nada se resolve.” (Roger Scruton, Pensadores da Nova Esquerda)

Anos atrás, a fim de confirmar uma intuição, disse a uma colega, professora de História na escola pública em que lecionava, que eu era um completo ignorante em história do Brasil, e perguntei se ela poderia me indicar algumas obras, que abordassem a história de maneira detalhada, para que eu pudesse comprar e aprender. Ela respondeu de bate-pronto, sem pestanejar: Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil.

Tentando dar a ela a chance de me indicar algo, digamos, menos tendencioso (falaremos disso abaixo), insisti: “Não tem mais nenhum?” E ela respondeu: “Mas esse é bom!” E eu: “OK, mas queria mais opções”. E ela, diante de minha insistência, disse: “Há os livros do Laurentino Gomes”. Ou seja, minha colega, professora de História havia mais de uma década, só soube me indicar um livro acadêmico marxista e uma trilogia escrita por um autor cuja falta de rigor, para dizer o mínimo, é fruto de críticas – meu amigo e historiador Thomas Giulliano que o diga.

Como eu disse, eu já imaginava que a resposta de minha colega seria mais ou menos essa, pois Caio Prado Júnior é considerado um dos maiores – se não o maior – historiadores brasileiros, cujas obras são a base de nossa educação e cujas ideias ainda figuram em nossos livros didáticos. Sua visão dualista a respeito do período colonial, compreendendo o Brasil como uma colônia de exploração, enquanto os Estados Unidos teriam sido uma colônia de povoamento, ainda é propagada e aceita em larguíssima escala (uma rápida consulta no Google pode confirmar o que digo), mesmo já tendo sido superada há anos.

O autor mais influente no ensino de História do Brasil em nossas escolas é não só um marxista declarado e festejado, mas alguém cujas ideias foram amplamente aceitas academicamente sem qualquer criticidade

Jorge Caldeira, historiador consagrado por obras como Mauá: um empresário do império e História da riqueza no Brasil, é um dos principais críticos dessa visão, e fala com profundidade sobre isso em sua obra História do Brasil com Empreendedores, apontando para as incoerências da abordagem de Caio Prado, uma vez que na virada do século 18 para o 19, por exemplo, e durante longo tempo, “a base da expansão [econômica do país] não eram as exportações coloniais, mas uma dinâmica que nascia do mercado interno da colônia”. Dentre os vários exemplos documentais que ele nos fornece, o do Rio Grande do Sul é paradigmático:

“Ali a base da produção era a pecuária, com destaque para as mulas, que compunham a espinha dorsal do sistema interno de transporte, dominado por tropas. Pelo mesmo caminho terrestre que levava a produção de mulas e gado para o mercado interno, pelo interior da capitania em direção ao norte, vinham os principais produtos ali consumidos: fumo, açúcar e aguardente. Mas, na virada do século 19, todo um novo conjunto de atividades se desenvolvia. Em primeiro lugar, uma nova agricultura. As vendas de trigo para o Rio de Janeiro estavam crescendo de maneira explosiva: de 7 mil alqueires, em 1780, para 213 mil, em 1800.”

A obra expõe, de maneira detalhada, muitos exemplos dessa expansão por todo o país, não só através da produção agrícola e da pecuária, mas também pelo grande comércio interno de escravos, não deixando de constatar que “a larga maioria da população brasileira era formada por homens livres. Segundo as estatísticas oficiais brasileiras disponíveis, em 1819 a população total brasileira seria de 4,39 milhões de pessoas [...]. A composição dessa população seria a seguinte: 56,6% de colonos livres; 18,2% de índios livres (portanto, um total de 74,8% de pessoas livres); 25,2% de escravos”. E mais:

“Como as pesquisas atuais indicam que a média de escravos por proprietário, na virada do século 19, era de cinco саtivos, o número de proprietários de escravos pode ser estimado em 220 mil – ou 9% do contingente de homens livres. Sendo assim, 2,26 milhões de homens livres, ou 91% do total deles, não eram proprietários de escravos – mas representavam 62% da população total. Para pensar nessa maioria como formada por produtores, devem ser descontadas mulheres e crianças, algo que ainda não foi feito com precisão; ainda assim, parece claro que a maioria da força produtiva era constituída por homens livres que não possuíam escravos.”

VEJA TAMBÉM:

Esses dados são completamente ignorados por nossos sagazes historiadores contemporâneos, cujo trabalho fundamental, segundo Scruton, é o de reescrever a história e “descrever o mundo em termos marxistas, de modo que cada aspecto da realidade pareça ecoar a voz distante dos oprimidos, convocando-nos ao bom trabalho de destruição”.

Especificamente sobre Caio Prado, Caldeira demonstra que sua influente obra Evolução Política do Brasil, de 1933, é de onde vieram todas essas ideias sobre o “ʻlatifúndio’ como categoria central para explicar ʻBrasilʼ”. E diz que esta obra seria “produto da criação de um autor que não tinha nenhuma experiência anterior com História e cuja produção intelectual até então se resumia a um artigo em jornal estudantil, tratando de política. Claro, isso tinha relação com o fato de o autor estar completando 26 anos no dia da entrega dos originais à gráfica”.

Mas isso não foi motivo para refrear a empolgação de pensadores importantes (e marxistas) como Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Segundo Fernandes, Caio Prado – um perfeito representante das classes dominantes brasileiras, uma vez que era neto de Martinho Prado Júnior e de uma linhagem longa de senhores de terras do período imperial –, passou por um “momento de crise da personalidade no qual o desabamento de estruturas mentais se conjuga à busca de outros conteúdos, com uma reorganização completa de suas bases perceptivas e cognitivas”, que o fez saltar do “radicalismo democrático-burguês para a oposição intransigente proletário-comunista”. E Evolução Política é “seu livro mais vibrante e, ao mesmo tempo, o que reclama explicitamente o seu caráter marxista” (como escreveu no artigo Obra de Caio Prado nasce da rebeldia moral, publicado na Folha de S.Paulo).

Outro historiador, Carlos Guilherme Mota, reproduzido por Caldeira, afirma que “a preocupação [de Caio Prado] de explicar as relações sociais a partir das bases materiais, apontando a historicidade do fato social e do fato econômico, colocava em xeque a visão mitológica que impregnava a explicação histórica dominante”. Note, caro leitor: visão mitológica. E Octavio Ianni, também reproduzido por Caldeira, dirá que “Caio Prado Jr. entra na história de modo nítido e saliente, como autor de uma interpretação original e influente. Inaugura uma interpretação marxista da formação social brasileira, estabelecendo um horizonte intelectual novo, sem o qual não foi mais possível pensar a história e o pensamento no Brasil”.

Desde pequenos, somos educados para odiar a história do nosso país

Ou seja, o autor mais influente no ensino de História do Brasil em nossas escolas é não só um marxista declarado e festejado, mas alguém cujas ideias foram amplamente aceitas academicamente sem qualquer criticidade, uma vez que, como diz “a historiadora Maria Yedda Linhares, que tinha uma linha própria de interpretação [...]: ʻCaio Prado transformou-se numa espécie de bíblia da historiografia; quem não repetia o que ele dizia estava cometendo uma espécie de heresia, uma traiçãoʼ”. Isso explica por que vemos, ainda hoje, com uma frequência impressionante, estudantes de História ou Sociologia, aos montes, na internet, repetirem as baboseiras de Caio Prado com um ar de ciência absoluta.

E Caldeira demonstra, de modo detalhado, como o marxismo de Caio Prado era absolutamente incipiente, mais fruto de empolgação que de análise, quando escreveu o seu Evolução Política do Brasil: “uma pesquisa no arquivo de Caio Prado Júnior revela dados importantes sobre metodologia. O primeiro deles é a imensa dificuldade para encontrar qualquer menção a textos de Marx, ou mesmo de qualquer autor marxista, até fevereiro de 1932, exatamente um ano antes de Caio Prado Júnior entregar os originais de seu livro à gráfica. [...] A referência mais antiga ao marxismo encontrada surge relacionada a uma opção de militância política comunista”; ou seja, não foi uma opção primariamente teórica, mas prática. E finaliza o capítulo sobre a metologia de Caio Prado dizendo que “o indicativo é que Evolução política do Brasil foi construído com fontes bastante limitadas – e sem conhecimento nem dos textos propriamente metodológicos do próprio Karl Marx nem de seus trabalhos de maior relevância teórica”.

Mas o fato é que a visão maniqueísta e marxista de Caio Prado é só um dos aspectos da nefasta interpretação pós-moderna de nossa história. Na verdade, o que ocorre é que, desde pequenos, somos educados para odiar a história do nosso país. Quase tudo o que aprendemos na escola – sobretudo no que concerne às ciências humanas – tem como base os pressupostos da chamada Teoria Crítica, criada pelos pensadores marxistas do Instituto para Pesquisa Social, mais conhecido como Escola de Frankfurt, e que encantam, ainda hoje e de forma praticamente hegemônica, gerações de acadêmicos pelo mundo. Tal abordagem, segundo Olgária de Matos em seu livro sobre a Escola de Frankfurt:

“Sob a influência das análises de Marx e de sua crítica à economia política burguesa, [...] revela a transformação dos conceitos econômicos dominantes em seus opostos: a livre troca passa a ser aumento da desigualdade social; a economia livre transforma-se em monopólio; o trabalho produtivo, nas condições que sufocam a produção; a reprodução da vida social, na pauperização de nações inteiras. Assim, a crítica à razão torna-se a exigência revolucionária para o advento de uma sociedade racional, porque o mundo do homem, até hoje, não é ʻo mundo humanoʼ, mas ʻo mundo do capitalʼ.”

VEJA TAMBÉM:

De acordo com Marie-Claire Lavabre, na obra A companion to the philosophy of history and historiography, editada por Aviezer Tucker, a historiografia crítica “julga e condena, fornece ʻa força para quebrar e dissolver um fragmento do passado a fim de garantir a sobrevivênciaʼ. Embora a historiografia crítica ʻseja sempre implacável e sempre injusta, pois nunca decorre de fatos purosʼ;  ela, sem dúvida, serve aos ʻinteresses dos vivosʼ e, por essa razão, é favorecida por Nietzsche [em suas Considerações extemporâneas]. Mas ainda há o risco de que a realidade do passado seja julgada pelo critério do que é verdadeiro no presente. A historiografia crítica pode, então, se tornar uma identidade ilusória e obscura, pois ʻassim como somos o fruto de gerações passadas, também somos o fruto de seus erros, suas paixões, seus erros e até mesmo seus crimesʼ”.

Não é difícil perceber a influência dessa abordagem no maior sucesso editoral do mercado de livros didáticos no Brasil, a controversa coleção Nova História Crítica, de Mário Schmidt, publicada em 1999 e distribuída e utilizada em larguíssima escala nas escolas públicas brasileiras, nos ciclos fundamental e médio, até ser retirada, em 2008, após sofrer duras críticas – a mais conhecida, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo. Nessa obra, segundo matéria desta Gazeta do Povo, usando de um tipo de humor que, segundo seus apologistas, era fácil de ser lido pelas crianças e jovens, “os alunos de 8.ª série ʻaprenderamʼ, por exemplo, que o famoso óleo de Pedro Américo que retrata o Grito da Independência mais se parece com ʻum anúncio de desodorante, com aqueles sujeitos levantando a espada para mostrar o sovacoʼ. Ou que o imperador Pedro II é um ʻvelho, esclerosado e babãoʼ. E ainda que a Princesa Isabel era uma mulher ʻfeia como a peste e estúpida como uma leguminosa!ʼ”.

Por estarmos presos a essa interpretação crítica, marxista de nossa história, que nos faz odiá-la, nosso senso de pertencimento está profundamente maculado (se é que existe) e nosso patriotismo é doentio

É por essas e outras que, na atualidade, uma escola de samba se veja autorizada a pegar um personagem tão historicamente documentado como Dom Pedro II e apresentá-lo decapitado por um guerreiro indígena; sem levar em consideração que o imperador era um profundo interessado nos povos indígenas; que, apesar da visão romântica, via o indígena como elemento fundamental na formação do país e da imagem que queria construir do Brasil; que aprendeu em profundidade o tupi e se comunicou com eles por várias vezes. De acordo com a filóloga e historiadora Mary Wilhelmine Williams, numa obra que escreveu sobre o imperador, Dom Pedro the Magnanimous, Second Emperor of Brazil, publicada em 1937:

“Além de incentivar os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a estudarem as línguas indígenas, Dom Pedro dedicou considerável atenção aos idiomas dos Tupis e Guaranis, povos estreitamente relacionados do sul do Brasil. Um breve estudo seu, Quelques notes sur la langue tupi (ʻAlgumas notas sobre a língua tupiʼ), que não foi assinado, foi incluído em um artigo sobre o Brasil publicado na Grande Encyclopédie. Provavelmente é um exagero dizer, como afirma um escritor, que Dom Pedro compreendia o tupi ʻperfeitamenteʼ; no entanto, é certo que ele tinha um bom domínio da língua. Em 1879, um cacique e alguns de seus homens, pertencentes a uma tribo do Paraná, foram ao Rio de Janeiro para se queixar ao imperador sobre o tratamento que haviam recebido das autoridades policiais no interior. Eles foram alojados no Museu Nacional, mas não conseguiram explicar sua demanda porque ninguém conseguia entendê-los. Ao tomar conhecimento de sua presença e situação por meio da imprensa, o Imperador foi visitá-los e, segundo relatos, conversou com eles de maneira natural e fluente. Parece, no entanto, que ele conhecia menos o idioma dos Guaranis do Mato Grosso, pois não conseguiu se fazer entender por uma delegação desse povo que visitou o Rio de Janeiro em 1885.”

E esse é o homem – inegavelmente o único verdadeiro estadista que tivemos em toda a história – que a Acadêmicos do Tucuruvi, que foi rebaixada para o Grupo de Acesso, retratou como um inimigo dos povos indígenas que mereceu ser decapitado. E assim seguimos, sem conhecer a nossa história, que, mesmo tendo sido, como disse repetidas vezes Gilberto Freyre, construída sob antagonismos, tem coisas que devem, sim, ser enaltecidas e rememoradas a fim de nos permitir a construção de um imaginário positivo de nação, de povo. E é por estarmos presos a essa interpretação crítica, marxista de nossa história, que nos faz odiá-la, é que nosso senso de pertencimento está profundamente maculado (se é que existe) e nosso patriotismo é doentio.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.