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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Ciclo sem fim

O carma brasileiro

salvacao pela política
Nosso destino é andar em círculos esperando por mais um salvador da pátria e destruindo quem quer que se oponha ao novo ungido. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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“O mal da degradação das normas corrói a ordem no indivíduo e a ordem na sociedade. Enquanto não reconhecermos a natureza desse mal, afundaremos cada vez mais na desordem da alma e na desordem do Estado. A recuperação das normas só poderá começar quando nós, modernos, compreendermos de que modo nos afastamos das antigas verdades.” (Russell Kirk, Enemies of the permanent things)

No artigo da última semana eu disse ao leitor que estava cansado de escrever sobre política. Faço isso aqui, nesta coluna, desde 2018, e de lá para cá posso dizer, com certeza, que nada mudou. Continuamos andando em círculos, ora acossados por uma facção, ora por outra, ora por várias ao mesmo tempo, sem nenhuma perspectiva de mudança, por mais que as pessoas, desesperadamente, a meu ver, estejam tentando, há muito tempo, uma bala de prata que resolva um problema que é mais profundo que podemos vislumbrar.

No mesmo artigo descrevi a situação brasileira como um samsara infindo. O samsara é, nas religiões indianas, o ciclo contínuo de nascimento, morte e renascimento (ou reencarnação) ao qual os seres estão presos por causa da ignorância, do apego e do desejo. Tal ciclo é impulsionado pelo carma, que é a lei de causa e efeito que governa as ações dos seres, ações essas que criam condições que levam ao renascimento e à continuação do samsara. Só é possível sair do samsara através do autoconhecimento; e o autoconhecimento é o caminho para a liberdade – como disse Sócrates ao jovem Alcibíades no famoso diálogo platônico.

Perseguição política por não me dobrar às euforias ideológicas eu sofro há bastante tempo

O primeiro artigo dessa coluna, escrito em 1.º de março de 2018, termina enfatizando um lema que sempre foi meu norte, tanto no debate público quanto na vida privada:

“A Liberdade é um bem inestimável, um direito radical que deve ser preservado – em pensamento e ações – não importando as circunstâncias. E a melhor maneira de garantir essa liberdade é o respeito àquilo que T. S. Eliot chamou de Coisas Permanentes [...]. Nem mesmo a justiça pode ser confundida com a vingança; pois, enquanto esta é emotiva e inconsequente, aquela é realizada com prudência e sabedoria. Por isso, não repitamos os erros do passado, entregando nossa liberdade a ideologias utópicas, muito menos ao deus máximo da modernidade, o Estado.”

Sei que, diante de uma situação que parece se agravar a cada momento, é difícil resistir ao desejo de soluções abruptas, reacionárias ou revolucionárias, no sentido de, respectivamente, reverter o curso da história a uma ordem anterior ou de fazê-lo avançar para uma nova ordem. Compreendo a ansiedade e a frustração daqueles que se apegaram a promessas messiânicas, ainda que de agentes políticos comprometidos com a desordem por fazerem parte dela.

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Mas política, ainda mais num arremedo de democracia em que vivemos, é feita de convencimento, de um tipo de retórica que, a depender das necessidades imediatas da população, não precisa nem sequer fazer sentido na realidade, bastando que seja veículo de uma ideologia, de um discurso superficial voltado à mobilização social e à “modificação da mentalidade pública, das instituições da vida social”, como diz Andrei Pleșu em sua conferência sobre “ideologia” já citada muitas vezes nessa coluna. Mas Pleșu nos adverte:

“Uma primeira forma de proteção contra a invasão ideológica é o pensamento autônomo, o pensamento por conta própria. Qualquer ideia vinda de fora, qualquer produto pronto para usar, qualquer moda lançada ciclicamente na cena pública tem de ser pesada com uma suspeição saudável. As ideologias são, de regra, pensamento massificado e, segundo a expressão célebre de Czeslaw Milaw Milosz, ʻmente cativaʼ. O sujeito deixa de ser o proprietário de seus próprios pensamentos, o que significa que seu pensamento deixa de ser um ato livre.”

Quando, em 2017, fui incluído numa famigerada “Lista da Falsa Direita” – que o leitor, se tiver muita curiosidade, pode conferir numa postagem minha, no Facebook, de 7 de julho de 2017 –, que incluía uma plêiade de formadores de opinião que não haviam aderido àquele incipiente, mas muito persuasivo movimento em torno da pré-candidatura de Jair Bolsonaro, eu já sabia o que viria pela frente. Então fiz troça: “Como sobreviver sem pertencer a esse movimento gnóstico que almeja possuir as chaves do... Palácio do Planalto? Como denominar essa corajosa investida revolucionária – ops! – contra os falsários que desejam ʻatacar o único presidenciável que pode desviar o Brasil desse destino [o comunismo]’?”.

Os gravíssimos problemas que assolam o país não serão solucionados por parlamentares do Centrão

Para aliviar a curiosidade do direitista neófito, que no longínquo 2017 nem sequer sabia da existência das posições políticas à direita e à esquerda, constavam nessa lista: euzinho, Alexandre Borges, Carlos Andreazza, Rodrigo Jungmann, Paulo Briguet, Flavio Morgestern, Paulo Figueiredo Filho, Hélio Beltrão, Rodrigo Gurgel, Flavio Quintela, Filipe Trielli, Rodrigo Constantino, Flavio Gordon, Joice Hasselmann, Paula Rosiska, Felipe Moura Brasil, Tom Martins, Rachel Sheherazade e Paulo Eduardo Martins. Mas, como nada é ruim que não possa piorar, é possível se certificar que muitos dessa lista, posteriormente, engrossariam as fileiras em apoio a Bolsonaro e nisso permanecem até hoje.

Ou seja, perseguição política por não me dobrar às euforias ideológicas eu sofro há bastante tempo. E o leitor que discorda de mim poderia, simplesmente, me dar os parabéns por manter a minha coerência, que, longe de ser covardia, é, antes, uma convicção de que os gravíssimos problemas que assolam o país não serão solucionados por parlamentares do Centrão. Uma certeza por saber que o autoritarismo de nosso Judiciário foi não só fomentado, mas aumentado pelas atitudes daqueles que, com o poder nas mãos, se viram reféns de sua própria ignomínia.

Portanto, para quem está há tanto tempo nessa brincadeira, um certo cansaço é compreensível. Não se trata de “isentismo”, de “fazuéli” ou qualquer outra rotulação que os homens massa queiram inventar; trata-se, tão somente, de depositar a esperança no lugar certo. Como diz o salmista, em texto esquecido por muitos de meus irmãos em Cristo: “Uns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós faremos menção do nome do Senhor nosso Deus. Uns encurvam-se e caem, mas nós nos levantamos e estamos de pé” (Salmos 20,7-8). Amém.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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