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“Como? A humanidade se imbeciliza em favor do progresso maquinal e nem sequer deveríamos fazer uso dele? Deveríamos manter diálogos com a estupidez quando podemos escapar dela num automóvel?” (Karl Kraus)
Recentemente tenho pensado muito nos comentários que são feitos a partir de coisas que escrevo, sobretudo nas redes sociais. Percebo que a imensa maioria das pessoas não responde – criticando ou concordando – ao que está escrito, mas a algo que elas simplesmente queiram dizer e encontram, em nossa postagem, por alguma associação circunstancial, a oportunidade de fazê-lo; se der certo, ainda obterão uma resposta que conferirá certa importância ao que elas disseram, não importa o quão estúpido seja o comentário.
Que o leitor perdoe ser tão direto, mas não há outra maneira de dizê-lo. Na internet, a moeda é a economia de atenção, e praticamente todo mundo quer ser visto. Quem faz um comentário para não ser lido? Acho que ninguém. Ao escolher comentar algo numa postagem alheia, quero, obviamente, que pelo menos o autor da postagem leia e considere o meu comentário como digno de sua atenção e de sua resposta.
Parte considerável de nossos problemas atuais de incompreensão na leitura decorre de uma deficiência no processo de alfabetização
O problema é que, geralmente, os comentários das pessoas têm pouca relação com o tema principal da postagem, e respondê-los é abrir uma janela de discussão paralela que, certamente, se ramificará em outras tantas janelas que, no fim das contas, não levarão a lugar algum. Isso porque o comentarista não tem nada a perder e não precisa buscar coerência e nem mesmo honestidade intelectual no que escreveu. Se o comentário inicial já foi um desvio do tema, não há garantia alguma de que, em algum momento, o tema ressurgirá na discussão. Cabe ao autor, se quiser, a tentativa, quase sempre infrutífera, de conduzir a discussão para o rumo certo.
Outro dia comentava isso com um amigo e ele me disse: “as pessoas não sabem interpretação de texto”. Ao que, de imediato, me veio algo à cabeça, e respondi: “não se trata de interpretação, mas de compreensão. Só é possível interpretar o que, primeiro, se compreende. As pessoas têm um problema anterior: elas nem sequer entendem o que leem”. Muitos chamam esse problema de analfabetismo funcional, mas eu chamo de analfabetismo mesmo, literal; um problema básico de alfabetização.
Como não sou pedagogo, somente pude intuir minhas impressões. Mas busquei ajuda e a encontrei no livro A falácia socioconstrutivista, da professora e psicopedagoga Kátia Simone Benedetti. O problema de alfabetização que está minando nossa capacidade de compreensão na leitura não só de textos simples, mas de sentenças, de frases, de palavras, está sendo provocado, fundamentalmente, pelo método de alfabetização socioconstrutivista. De acordo com a professora Simone, em entrevista a meu colega e amigo Francisco Razzo, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo: “O socioconstrutivismo é uma perspectiva pedagógica ou, como seus adeptos gostam de denominá-lo, ʻum novo paradigmaʼ. No entanto, é uma perspectiva falaciosa à medida que ignora as demandas da cognição infantil ao mesmo tempo em que afirma justamente ser condizente com elas”.
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O que significa isso? Basicamente que, em função de a aprendizagem ocorrer no cérebro, de ser um processo físico, o cérebro deve ser preparado e treinado para aprender. Em sua obra, ela aprofunda, a partir de estudos neurocientíficos:
“Um dos esclarecimentos mais importantes trazidos pela neurociência para a área educacional é o de que, embora a linguagem verbal seja um instinto humano biologicamente herdado e cujo desenvolvimento é natural e espontâneo, a leitura-escrita não o é. Por outro lado, ainda que seja uma invenção cultural que demanda aprendizado explícito, a leitura-escrita só acontece porque nosso cérebro conta com recursos neurológicos capazes de sustentá-la. Exatamente por isso é que os estudos neurocientíficos não podem mais permanecer ignorados pela área educacional, como têm sido até então pela maior parte dos ʻespecialistasʼ e acadêmicos, pois a ciência abre um novo horizonte para a compreensão dos problemas de aprendizagem, para o diagnóstico precoce de necessidades educacionais especiais, para maior entendimento das diferenças individuais de aprendizado, bem como para a otimização dos métodos e didáticas de ensino.”
Ou seja, parte considerável de nossos problemas atuais de incompreensão na leitura decorre de uma deficiência no processo de alfabetização. Nosso cérebro tem dificuldade de decodificar corretamente o que lemos. Ela complementa: “Descobriu-se que o cérebro humano conta com uma área específica, uma rede complexa de vias nervosas visuais e auditivas na qual ocorrem as representações visuais, semânticas, sonoras e de articulação das palavras no decorrer do aprendizado da leitura-escrita. Essa região originalmente se desenvolveu com a função de reconhecer rostos, mas diante da invenção cultural da escrita, passou a ser utilizada, por meio da ʻreciclagem neuronalʼ, para cumprir outra função: a da leitura”.
Quase ninguém está interessado em dialogar, compreender, e muito menos em convergir; o que importa é a discordância e a adrenalina que isso gera ao dar uma lacrada na postagem de um estranho
Óbvio que estou tratando aqui de pessoas que foram e são efetivamente educadas segundo o método socioconstrutivista, mais comum nas gerações mais novas e que está no fundamento de nossa Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que foi oficialmente implementada em 2020. Entretanto, o socioconstrutivismo é utilizado amplamente há muito tempo na educação brasileira. Desde o lançamento da obra Psicogênese da Língua Escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, em 1999, livro que fundamenta o socioconstrutivismo a partir dos estudos de Jean Piaget (orientador de Ferreiro), esse método tem sido aplicado na alfabetização de nossas crianças, mesmo que os estudos de neurociência mais atuais já tenham demonstrado suas deficiências estruturais. Isso porque “as neurociências, ou ciências do cérebro, incluem diversas áreas de conhecimento, como a neurologia, a psicologia, a neurofisiologia, a neurobiologia, a genética comportamental”, e “um dos efeitos mais relevantes e notáveis dessa nova frente de pesquisas científicas [...] é começar a fazer a interface entre a dimensão biológica e a dimensão social manifesta do comportamento humano”.
Dentre as muitas sequelas provocadas pela deficiência na alfabetização então a incapacidade de reconhecer sílabas tônicas das palavras e os erros de ortografia de toda ordem. Quem nunca viu a confusão que, atualmente, fazem entre “mas” e “mais”? Tudo isso pela falta do que a professora Simone chama de consciência fonológica.
Voltando ao tema inicial deste artigo, é evidente que a vontade de reagir imediatamente a uma postagem também dificulta a compreensão do que está escrito. As pessoas têm pressa em expressar as suas opiniões. Também é óbvio que, em geral, as pessoas buscam por vieses de confirmação em redes sociais. Quase ninguém está interessado em dialogar, compreender, e muito menos em convergir; o que importa é a discordância e a adrenalina que isso gera ao dar uma lacrada na postagem de um estranho. Porém, nada me tira da cabeça que o problema fundamental é de alfabetização mesmo. Nesse sentido, um aforismo, obra máxima de condensação e síntese (como o que está em epígrafe), que diz muito dizendo pouco, se torna um hieróglifo.
E, no caso dos adultos, a não ser que essa deficiência seja diminuída ou sanada por outros meios – penso que o contato profundo com a literatura e outras artes da palavra pode ajudar –, seguiremos perpetuando ignorância como se fosse consciência, e o ódio como se fosse crítica. Que Deus – e a Caminho Suave (que, sim, também está ultrapassada, estou brincando) – nos ajude.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




