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Diretoria da Confederação Abolicionista. Em pé, da esq. para a dir.:  José do Patrocínio, Luís de Andrade, inácio Von Doellinger, Praxedes Medella e Luiz Pereira. Sentados, da esq. para a dir.: André Rebouças, João Clapp e José de Seixas Magalhães. Foto: Reprodução.
Diretoria da Confederação Abolicionista. Em pé, da esq. para a dir.: José do Patrocínio, Luís de Andrade, inácio Von Doellinger, Praxedes Medella e Luiz Pereira. Sentados, da esq. para a dir.: André Rebouças, João Clapp e José de Seixas Magalhães. Foto: Reprodução.| Foto:

“A igualdade é aquele estado da vida pública no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável de igualdade – o comunismo –, porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau de servidão”. (Tobias Barreto)

Conforme dito em meu último artigo, de 15 de novembro, estive em Manaus para um evento em comemoração ao Dia da Consciência Negra, e, conforme esperado, fui o único a falar de uma perspectiva conservadora/liberal. Mas o que me parece mais curioso, em minhas pesquisas, é o completo ostracismo para onde foram lançadas figuras absolutamente singulares e fundamentais na luta antirracista brasileira, simplesmente por não serem alinhadas ao marxismo que se apoderou quase que completamente dos movimentos negros ao longo dos últimos 50 anos.

Na ocasião, conversando, ao final, com um dos palestrantes – que, apesar de não se declarar marxista, pensa como tal, em categorias de raça e classe –, perguntei por que o Movimento Negro ignora André Rebouças, e por que, quando mencionam abolicionismo, citam José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, mas não Rebouças. A resposta foi surpreendente e mais ou menos assim: “porque ele era chapa-branca [sim, essa foi a palavra]; seu pai era rico e eles tinham amizade com a família imperial”.

Pois é, caríssimo leitor, fiquei espantado com a afirmação do ativista, pois Rebouças mergulhou na causa antes de todos aqueles que compuseram a Confederação Abolicionista. Em 1867 – treze anos antes, portanto, do momento culminante, que se iniciou em 1880, com a associação dele a Patrocínio e Nabuco, ele já havia iniciado um projeto de emancipação e participado de algumas ações nesse sentido. Foi praticamente o mentor dessa última fase abolicionista – digo última fase porque em 1850 já havia um movimento pujante, na Bahia, liderado por Abílio César Borges, e mesmo na época de D. João VI, algumas iniciativas isoladas já ocorriam. Rebouças foi aquele que Nabuco eternizou em seu Minha Formação, dizendo que, apesar de não ter o ímpeto popular de Patrocínio e, por isso, um papel de destaque, de linha de frente,

“teve o mais belo de todos, e calculado por medidas estritamente interiores, psicológicas, o maior, o papel primário, ainda que oculto, do motor, da inspiração que se repartia por todos… não se o via quase, de fora, mas cada um dos que eram vistos estava olhando para ele, sentia-o consigo, em si, regulava-se pelo seu gesto invisível à multidão… sabia que a consciência capaz de resolver todos os problemas da causa só ele a tinha, que só ele entrava na sarça ardente e via o Eterno face a face…”

Ouvir um militante do Movimento Negro dizer que ele não foi lá muito importante é simplesmente absurdo!

Mas tem uma explicação: André Rebouças era monarquista convicto, amigo querido da família imperial e, sobretudo, um liberal, influenciado por Adam Smith, e com uma noção bastante clara de que a liberdade individual e o espírito de associação eram os melhores caminhos para o pós-abolição e a prosperidade do Brasil. Seu projeto de “reforma agrária” (que ele chamava de Agricultura Nacional), era inovador e cheio de afirmações como:

“Dentro do círculo de seus direitos, cada cidadão é, deve ser, tem perfeitamente o direito de ser, pela nossa constituição e pelas nossas leis, um Estado; uma companhia, uma associação, soma o círculo dos direitos dos cidadãos que a compõem; e o seu círculo de direito é o círculo máximo, que circunscreve o círculo de todos os seus associados; esse círculo é, naturalmente, maior e mais forte, e é por isso mesmo que causa assombro, que causa medo, que causa terror aos oligarcas que querem um povo fraco e dividido: um povo de carneiros, tosquiável ao seu livre arbítrio, incapaz da menor resistência. Não permita o Onipotente que tão miserável espetáculo jamais seja visto no Brasil. Possa bem, pelo contrário, a nossa cara Pátria cumprir a grandiosa missão que lhe destinou o Criador, pela iniciativa individual e pelo espírito de associação, filho sublimes da Liberdade”. (Agricultura Nacional, Massangana)

É por isso que os marxistas o detestam, desdenham dele, querem-no longe dos movimentos. Ele era capitão do mato para essa gente limitada.

Em meu curso “O Brasil é um país racista?” há uma aula inteirinha sobre André Rebouças, destacando sua importância fundamental não só para o abolicionismo brasileiro, mas também para a educação, a ciência e a cultura.

Outro que é sumariamente ignorado é o poeta, filósofo, polemista crítico e jurista Tobias Barreto – o responsável por introduzir a filosofia alemã no Brasil. Tobias Barreto foi um gênio ímpar de nossa cultura; foi um liberal não só por convicções econômicas, mas políticas, tendo se filiado ao Partido Liberal em 1870. Foi, também, abolicionista e republicano.

Sobre seu credo de liberdade radical – que acabei por transformar em meu credo pessoal –, podemos ler:

“Fazendo tabula rasa de meu passado que é simples, de todas as recordações de outros tempos, claras ou sombrias, tristes ou lisonjeiras, firmei-me no propósito de estudar os homens e as coisas e só caminhar sob a direção de minhas próprias convicções. Ser-me-ia fácil atirar-me em busca da ventura, empunhando, eu também, um dos mil turíbulos que se balançam em torno do poder; ser-me-ia fácil dizer à minha razão: não sejas curiosa, não indagues os princípios, vamos aos meios… Mas tudo isso seria indigno, e tanto bastava para assim não praticar. Por outro lado, não me sinto com disposição de ser simplesmente uma cifra de mais no número deste ou daquele rebanho, limitando-me a expandir os ternos balidos da humilhação e da baixeza. Bem conheço quanta audácia há neste propósito, quanto perigo há nesta audácia: mas obedeço à lógica e aceito as consequências. Se não tenho forças para vir, da parte da liberdade em face do espírito público, desfolhar o livro de suas fraquezas, de seu criminoso desânimo; se não tenho forças para lançar ao ar este punhado de terra de que falava Mirabeau, de onde nascem os homens de que precisamos, os Mários conculcadores da prepotência indébita; quero ao menos ter o trabalho de preparar eu mesmo o alimento de minhas crenças, quero inebriar-me de meu próprio vinho”. (Os Homens e os Princípios)

E em seu credo liberal, afirma – vale citá-lo longamente:

“O princípio democrático, em sua ideia, não é decerto que todo o cidadão, como tal, exerça funções de governo diretas e imediatas, mas é que todos por sua ação, menos periódica e mais tenaz, possam, como lhes aprouver, mudar e melhorar as peças governativas; é que o espírito popular não esteja de um lado, e os poderes constituídos de outro, é que a representação nacional seja uma coisa séria, expressiva e real, que o menor interesse público tenha sempre um voto que o signifique; é em suma a liberdade, operando como força, e a igualdade operando, como tendência, em todos os átomos do corpo social, para a sua completa harmonia e felicidade.

Disse a igualdade operando como tendência, e não quero deixar passar a frase, desacompanhada de explicação. Pode correr o risco de não ser entendida. Disse-o pois e repito. É neste ponto que separo-me das utopias comuns. A igualdade só pode obrar como tendência, não pode obrar como direito. Se é absurdo que o criado, por exemplo, queira ser igual ao amo, que o operário queira ser igual ao capitalista, não é absurdo, antes natural, que um e outro, como termos de relação, tendam a nivelar-se com o termo correspondente. Ao passo que a liberdade é uma força individual, força ativa e consciente, a igualdade é apenas, como vimos, um pendor social; e ao passo que as leis da liberdade são subjetivas, as que regulam a igualdade são objetivas e estranhas à vontade do indivíduo.

A democracia sensata que proclama a liberdade como seu magno princípio, não pode prometer a igualdade senão como resultante de todas as forças contrabalançadas no seio da sociedade; não quer bater o cordel na cabeça do povo, não quer passar a régua na superfície dos mares”. (Ibid., grifo meu)

Homens como esses, com essas ideias, só podem desagradar coletivistas empedernidos. Foram, absolutamente todos, trocados por Zumbi, uma espécie de mito moderno que foi transformado num símbolo de resistência contra o racismo. Que alimenta a sanha de revolta do movimento, mas não propõe caminhos aos indivíduos.

Um último testemunho.

No dia 23 de novembro, fui, a convite de um professor da escola onde leciono, acompanhar os alunos numa palestra denominada O negro no mercado de trabalho no pós-abolição, realizada no Sindicato dos Bancários de Guarulhos. O palestrante, notoriamente um marxista, fez uma análise da formação do Brasil absolutamente enviesada: demonizou os portugueses, chamou os tupinambás canibais de bons selvagens, desdenhou da princesa Isabel, atribuiu a abolição a supostos interesses capitalistas ingleses – tese refutada há décadas –, falou em racismo estrutural… enfim, obviamente, um show de desinformação. Eu, como professor da escola que lhe servia de público, fiz com que ele assumisse o viés marxista de sua palestra, para que os alunos soubessem que ele falava a partir de uma interpretação que, apesar dele pretender unânime, está longe, muito longe de ser.

Mas uma coisa me chamou bastante a atenção: ele ignorou completamente o movimento abolicionista. Eu lhe perguntei o porquê, e ele respondeu: “o movimento era formado por uma pequena elite negra; as lutas no campo foram mais importantes”.

É brincadeira uma coisa dessas?

Ou seja, estimado leitor, a luta contra a escravidão ideológica está só começando. Mas sigamos trabalhando e perseverando em prol da liberdade de consciência – a única que realmente importa –, aprendendo e crescendo com as nossas contradições, sem nos deixarmos devorar ideologicamente por elas. A prudência é a mãe de todas as virtudes.

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