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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Hiper-regulação

Uma economia sufocada, ou: em defesa da cultura do charuto

charuto fabrica
Produção de charutos artesanais movimenta economia do Recôncavo Baiano e gera milhares de empregos. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk e Grok/Gazeta do Povo)

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“Se admitirmos que é bom impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em excesso, haverá quem pergunte: ʻSerá que o corpo é tudo? Não seria a mente do homem muito mais importante? Não seria a mente do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano?ʼ” (Ludwig von Mises)

Recentemente, nesta coluna, escrevi um artigo sobre minhas obsessões, dentre as mais recentes, os charutos. Falei sobre o prazer que descobri em seu consumo, no ritual envolvido, na cultura associada, nas amizades feitas. Como um produto de terroir – como o café e o vinho –, o universo do charuto é riquíssimo e envolve uma infinidade de elementos que, compostos, geram um produto de altíssimo valor agregado e uma cadeia produtiva que movimenta, só no Recôncavo Baiano, que concentra quase 90% da produção de tabaco para charutos do Brasil, mais de R$ 100 milhões por ano e emprega milhares de pessoas. São cerca de 4 mil toneladas anuais em folhas de tabaco in natura, e 13 milhões de charutos artesanais (premium); 97% da produção é exportada.

A produção de charutos no Recôncavo Baiano é uma atividade tradicional que existe há mais de 450 anos, é concentrada em cerca de 29 municípios – como Cachoeira, São Félix, São Gonçalo dos Campos e Cruz das Almas –, e emprega mais de 13 mil pessoas, entre empregos diretos, temporários, terceirizados e de transporte, segundo matéria do Portal do Agronegócio. Só de funcionários celetistas nas principais empresas, são quase 5 mil pessoas, que movimentam a economia da região e sustentam centenas de famílias há séculos. Segundo o portal Bnews, o cultivo do tabaco chega a representar 97% da renda de famílias da região.

A produção de charutos no Recôncavo Baiano é uma atividade tradicional que existe há mais de 450 anos, é concentrada em cerca de 29 municípios e emprega mais de 13 mil pessoas

Outro ponto importante ligado ao setor é a participação majoritária de mulheres. De acordo com uma matéria do portal Correio 24 Horas, da Bahia, “a média de produção anual na Bahia é de 17,5 mil toneladas, o que faz com que as atividades ligadas ao setor gerem cerca de 5,5 mil empregos diretos e indiretos, ocupados, em sua maioria, por mulheres. De acordo com o Sinditabaco, oito em cada dez trabalhadores são mulheres. No entanto, em algumas empresas, esses porcentuais se aproximam dos 100%”.

O diretor-executivo do Sindtabaco-BA, Marcos Augusto Souza, diz, na mesma matéria, que “nas fábricas, são gerações de mulheres charuteiras que sustentam suas casas e formam seus filhos com esse trabalho. Muitas charuteiras que atuam hoje são netas e filhas de charuteiras também. Esses fatores contribuem para a manutenção e importância histórica das mulheres no setor”. Já Rosana Falcão Lessa, doutora em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com pesquisa sobre o trabalho feminino no Recôncavo Fumageiro, diz:

“As mulheres foram força de trabalho predominante tanto nas manufaturas de charuto, como nos cuidados com a plantação do tabaco, onde o senso comum atribuía como características femininas: fragilidade, docilidade, paciência e atenção [...]. O apelo visual e cultural do Recôncavo Fumageiro está fortemente associado à imagem feminina, seja ela vinculada à engenhosidade na produção de charutos artesanais ou na criação de músicas e danças que nasciam no cotidiano da lida e refletiam estratégias de resistência, a alegrias, devoções, desafios e códigos que sedimentavam valores ancestrais.”

Ou seja, esses dados apontam não só para um universo cultural amplo e pujante, mas para uma cadeia produtiva importantíssima para a economia do país. Entretanto, o setor sofre com um estrangulamento causado por uma legislação absolutamente draconiana, que associa o charuto ao cigarro, tributa excessivamente, restringe o seu consumo e marginaliza produtores, comerciantes e consumidores. Decretos, leis e pressão da Organização Mundial de Saúde tornaram o Brasil referência mundial em controle do tabagismo, o que está longe de ser uma boa coisa, pelo menos no caso do charuto.

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A Lei 9.294/1996, conhecida como a Lei Antifumo, que restringe o consumo e comércio de “produtos fumígenos derivados do tabaco”, o faz de maneira absolutamente generalizada. A Convenção-Quadro da OMS para o Controle do Tabaco (CQCT), ratificada pelo Brasil em 2005, faz o mesmo. Isso restringe, inclusive, o consumo em ambientes próprios, privados, que precisam encontrar brechas na lei – a caracterização como clubes de associados, por exemplo – e o famigerado “jeitinho brasileiro” para funcionarem. Ainda assim, tanto comerciantes quanto consumidores vivem com a sensação de estarem fazendo algo de errado, criminoso.

São muitas as diferenças do charuto para o cigarro. A começar pela abordagem no consumo: a fumaça do charuto não é tragada, mas apenas mantida na boca por um tempo e depois expelida. O consumo também é esporádico e, mesmo aqueles raros casos em que o consumo é diário, dificilmente passa de algumas poucas unidades, não ocasionando o consumo compulsivo, como o cigarro. O charuto também não é voltado ao consumo de massa, tampouco é associado à juventude; nem tem a publicidade agressiva que tinha o cigarro (e que provocou toda a campanha antitabagista no país). É, essencialmente, um produto de nicho, um tanto elitizado e com preço diferenciado.

O charuto faz mal e pode causar dependência? Sim, mas café e Coca-Cola também. O charuto pode causar doenças, como câncer de boca? Pode, mas isso depende da quantidade e não há estudos conclusivos, somente inferências. Muitos outros produtos consumidos em larga escala – como industrializados, processados e ultraprocessados – também causam doenças graves e são não somente comercializados, mas nos últimos anos houve um aumento considerável em seu consumo no Brasil sem qualquer restrição (com exceção da proibição de venda nas escolas).

O alarmismo em relação ao charuto se dá por conta da associação direita (não exatamente das pessoas, mas das leis) com o cigarro, fazendo com que as restrições sejam as mesmas, a antipublicidade seja a mesma e a tributação seja a mesma, extorsiva; de 50% a 60% do preço final do charuto nacional é tributo, e de até 70% nos importados. Para efeitos de comparação, nos EUA a tributação é de 30% (somando impostos federais e estaduais); na Espanha/União Europeia é de 20% a 35%, e há incentivos para a produção; e na República Dominicana é de 15%.

O alarmismo em relação ao charuto se dá por conta da associação direita com o cigarro, fazendo com que as restrições sejam as mesmas, a antipublicidade seja a mesma e a tributação seja extorsiva

Precisamos urgentemente de uma distinção normativa clara, que diferencie o charuto como “produto artesanal”, distinguindo-o do cigarro. Também tem de haver um regime fiscal diferenciado, que crie uma tributação específica para o charuto, considerando suas especificidades. Os espaços para consumo e comercialização também devem ser autorizados, ainda que mantenham certo controle, regras e licença sanitária específica. Não precisa nem sequer reintroduzir o consumo em bares e restaurantes, basta que os locais apropriados sejam permitidos. Outra ação importante deve ser a inclusão da produção artesanal de charutos no Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, fomentando o turismo e a economia dos locais em que se cultiva o tabaco e que produzem charutos artesanais.

O antitabagismo é, antes de tudo, uma ideologia, uma tentativa de solucionar um problema simples criando tantos outros para satisfazer grupos políticos e ativistas. Mais do que isso: atualmente, o antitabagismo é fonte de recursos para o governo brasileiro, que fatura mais de R$ 1 bilhão em tributos. O problema é que essa injustiça tributária é prejudicial para a economia do país, sobretudo nas regiões onde se produz a folha de tabaco e os charutos, que têm quase 100% de sua economia voltada para essa atividade.

É necessário que o Estado promova a produção sustentável e artesanal do charuto brasileiro, observadas as normas sanitárias e ambientais. Isso é bom para a economia, para a cultura e, inclusive, para a saúde mental, uma vez que o charuto é um produto que causa bem-estar, contribui para a concentração, proporciona um desacelerar da correria do dia a dia, acrescenta cultura e propicia a socialização.

Como diz Ludwig von Mises (em complemento ao trecho citado em epígrafe), em seu As Seis Lições: “Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo humano deve consumir, de determinar se alguém deve ou não fumar, deve ou não beber, nada poderemos replicar a quem afirme: ʻMais importante ainda que o corpo é a mente, é a alma, e o homem se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir música ruim e assistir a maus filmes. É, pois, dever do governo impedir que se cometam esses errosʼ.”. E o que não faltam é música, livros e filmes ruins sendo consumidos atualmente.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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