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“Pois o suprassumo da injustiça é parecer justo sem o ser.” (Platão)
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 22 de março de 2022, a então candidata a deputada federal Erika Hilton disse: “Minha pretensão de ir a Brasília é pela necessidade de refundação do Brasil”. Hilton, uma mulher trans, afirmou ainda que “ao me colocar nessa eleição [de 2022], que será violentíssima e cruel, eu fico receosa, mas de forma alguma acovardada ou desestimulada. Essas ameaças são reflexo do quanto minha voz tem incomodado e do quanto tenho feito parte de um processo revolucionário e transformador”.
Passados pouco mais de três anos, o que temos? Mais uma figura política que usa de suas prerrogativas para se autopromover; que usa o dinheiro do contribuinte em benefício próprio; que entra, o tempo todo, em discussões inócuas em redes sociais; que se envolve em escândalos envolvendo desvio de função em seu gabinete; e que, para se defender, usa do identitarismo que a elegeu não só como escudo, mas para atacar todo aquele que questiona suas contradições. Ou seja, temos mais do mesmo.
Se bem que não temos exatamente mais do mesmo, temos pior. Os problemas causados pelos políticos tradicionais, aquelas velhas raposas conhecidas por nós há muitos anos, são bastante, digamos, prosaicos. Eles “só” são, na pior das hipóteses, corruptos. O seu patrimonialismo é discreto, eles ostentam com parcimônia e realizam seus conchavos de modo dissimulado.
O político influencer é diferente: ele precisa aparecer. As redes sociais são, ao mesmo tempo, o seu plenário e o seu palanque; mas, também, a sua passarela e o seu cadafalso. A superexposição é uma estratégia e uma armadilha, pois, como diz o provérbio: “a vaidade é o espelho dos tolos”. O político influencer vive de exibicionismo que as redes sociais lhe exigem e não abre mão disso, e seus eleitores não abrem mão disso, numa junção perversa de estetismo e sinalização de virtude.
Erika Hilton é mais uma figura política que usa de suas prerrogativas para se autopromover; usa o dinheiro do contribuinte em benefício próprio e entra, o tempo todo, em discussões inócuas em redes sociais
Com Erika Hilton não é diferente e os acontecimentos das últimas semanas são prova disso. Primeiro, ela se envolveu numa celeuma com a sua própria base ao tentar uma aproximação com o trapper Oruam, após um jovem ser assassinado numa operação policial no Morro Santo Amaro. Após Oruam perguntar “o que posso fazer?” (como poderia ajudar), Erika Hilton puxou assunto nos comentários. Iniciando com a velha falácia estruturalista e revolucionária – “não existe saída individual pra problemas que são estruturais” –, afirmou: “Minha sugestão é que você se conecte com quem já constrói essa luta há anos, com coragem e compromisso nas favelas”.
O que Hilton esqueceu é que Oruam é um apologista do Comando Vermelho, e parte de sua bolha tem consciência do mal que as facções criminosas fazem. Fez um vídeo pedindo desculpas, mas finalizando com o costumeiro tom passivo-agressivo: “Seguirei fazendo política com coragem, com responsabilidade e com os olhos voltados pro povo real, e não pros algoritmos do Twitter. Então vamos parar com esse freak show, com esse circo, com essa tentativa frustrada – porque não vai dar certo – e me fritar por causa de um tom errado que eu usei”.
Nem bem essa confusão esfriou, e lá vai Erika Hilton para Paris, assistir ao show da cantora Beyoncé, sob a justificativa de que tinha ido a Portugal para “conferências e encontros com lideranças políticas”, e aproveitou para ir até Paris assistir à apresentação da cantora da qual é fã. O tour de Hilton contou com vídeos, em suas redes sociais, desfilando na rua, com roupa jeans e chapéu de caubói, avisando os “eleitores” que tinha sido convidada para uma área VIP no show... ou seja, aquele trabalho típico de uma influenciadora digital, de divulgar o seu lifestyle.
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Houve muita reclamação também – inclusive por ela não ter ido à Parada LGBT. Mas Hilton se saiu, novamente, passivo-agressivamente, em suas redes: “Não sou uma aliada da pauta LGBT. Eu sou uma travesti. Eu sou uma pessoa LGBT. Eu luto pela pauta, porque também luto pela minha vida”.
Mas nem bem esse caso esfriou e o portal Metrópoles soltou uma matéria bombástica: “Erika Hilton paga seus dois maquiadores com verba da Câmara”. Segundo a matéria, “a deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) contratou dois maquiadores como seus assessores na Câmara dos Deputados, com salário que chega a R$ 9,6 mil ao mês. Índy Montiel e Ronaldo Hass costumam divulgar nas redes sociais os trabalhos de maquiagem para Hilton [...]. Segundo as informações disponíveis no site da Câmara, Índy trabalha com Erika desde 9 de junho deste ano. Já Ronaldo Hass está com ela desde maio passado. Índy recebe cerca de R$ 2,1 mil mensais; já Hass ganha em torno de R$ 9,6 mil, atualmente. Os secretários parlamentares, vagas que os dois ocupam, são responsáveis por tarefas como elaboração de projetos de lei; assessoria de imprensa; agendamento de reuniões etc.”.
Se qualquer coisa semelhante a isso fosse realizada por qualquer parlamentar adversário, Hilton seria a primeira a fazer alarde. Mas a grande imprensa abriu os microfones para ela se defender, e ela disse, em várias entrevistas, que tal acusação é mentirosa; segundo uma nota divulgada por ela, Montiel e Hass, “fora das atividades parlamentares, sempre que podem, me maquiam, e eu os credito por isso. Se não me maquiassem, continuariam sendo meus secretários parlamentares”.
Erika Hilton é só mais um exemplar do vergonhoso político patrimonialista brasileiro, e seu histrionismo sinalizador de virtudes é só uma maneira de usar o identitarismo para se proteger de críticas
O que ela não sabe – provavelmente finge não saber – é que isso é proibido pela Constituição, que, em seu artigo 37, diz que a administração pública deve obedecer “aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”; e o critério de impessoalidade proíbe o uso de recurso público para fins privados. Se Erika Hilton usa seus assessores para maquiá-la “sempre que podem” e os credita (ou seja, os divulga), ela faz uma permuta com o salário de assessor parlamentar que lhes paga.
Erika Hilton, no entanto, não se comporta como deputada, mas como influencer. Então, gravou um vídeo, com um de seus maquiadores, e debochou (de novo, ao modo passivo-agressivo) daqueles que se escandalizaram com seu patrimonialismo, dizendo: “Enquanto elas ficam aí, digitando ódio e intolerância, eu entrego revolução, eu entrego afronte, eu entrego atraque, queridas. Pode falar o que quiserem”. E o maquiador ainda fez uma participação especial, dizendo: “umas são, outras não; muitas jamais serão”. E Hilton finaliza: “e é sobre isso bobinhas”. Para finalizar, ontem publicou uma foto, ao melhor estilo modelo, com um look que, segundo disseram, custou mais de R$ 200 mil.
Ou seja, Erika Hilton é só mais um exemplar do vergonhoso político patrimonialista brasileiro, e seu histrionismo sinalizador de virtudes é só uma maneira de usar o identitarismo para se proteger de críticas. E ainda se comporta como influencer e usa sua posição como parlamentar para se projetar e promover pessoalmente. Nesse sentido, acabamos por sentir saudades do bom e velho “rouba, mas faz” do político tradicional.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




