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“Homens o mais sábio dentre vós é como Sócrates que reconhece não valer, realmente, nada no terreno da sabedoria.” (Platão, Apologia de Sócrates)
Voltei à sala de aula. Não esperava, mas, de certo modo ansiava por isso. Surgiu uma vaga para lecionar no ensino superior, numa faculdade bem próxima à minha casa, e fui indicado a ela por um amigo. Então não tinha por que recusar. Minha disciplina, Bases Filosóficas da Psicologia, é uma introdução à filosofia com ênfase em aspectos que concatenem os dois saberes. Algo bastante instigante para mim e estou muito feliz pela oportunidade.
Pois bem. Numa de minhas primeiras aulas, o tema era, obviamente, as origens da filosofia, ou melhor: o que é filosofia? Há muitas maneiras de responder a essa pergunta, como já demonstrei num artigo, em 2019, nesta Gazeta do Povo. Buscar a origem ou os fundamentos de todas as coisas é uma função primordial da filosofia. Apelar ao seu poder de sedução (eros), como fez Platão nʼO Banquete, ou Aristóteles, na Metafísica, com sua ideia de que “todos os homens tendem ao saber”, também é explicação válida. A filosofia tem ligação direta com o desejo pelo conhecimento, pois, etimologicamente, trata-se do “amor à sabedoria”.
Não só a filosofia, mas toda a história da humanidade só existe em função de uma pergunta fundamental, única, inescapável e aterradora: aquela sobre a existência de Deus
Mas, nessa aula, propus aos meus alunos outra perspectiva: a de que a filosofia é a arte de “não-saber”. O fundamento da filosofia é a ignorância. É Aristóteles que diz: “os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples [...]. Quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe”. Ou seja, toda a busca por conhecimento parte do reconhecimento da ignorância em relação não só aos fundamentos, mas, também, “diante das dificuldades mais simples”. Não saber algo é uma virtude que nos coloca diante do maravilhamento que é conhecer.
Entretanto, ousei um passo além com meus alunos, e disse que não só a filosofia, mas toda a história da humanidade só existe em função de uma pergunta fundamental, única, inescapável e aterradora: aquela sobre a existência de Deus. Toda filosofia, toda religião, toda moralidade, toda ciência, todo o progresso e até as artes existem no sentido de tentar, ainda que de modo indireto, responder a essa questão.
Explico com outra hipótese maluca: eu disse que, caso tivéssemos, de algum modo, a certeza absoluta, racional e incontestável, de que Deus existe, a humanidade (e talvez o mundo) não duraria mais alguns minutos. E o contrário também é verdadeiro: a certeza absoluta da não existência de Deus também acabaria com a humanidade em instantes. Não me pergunte o leitor como isso se daria, pois é apenas um exercício de imaginação. A certeza irrefutável dessas duas hipóteses impossibilitaria nossa vida nessa terra ou a destituiria de sentido.
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Lembram da formulação de Ivan Karamázov, personagem de Dostoiévski, para quem “se Deus não existe, tudo é permitido”? Pois é. Há outra, atribuída por vezes ao próprio Dostoiévski, outras vezes a Blaise Pascal, que afirma que “no coração do homem há um vazio do tamanho de Deus”. O aforismo de Pascal, que está em sua obra Pensamentos, diz o seguinte:
“Que nos gritam, pois, essa avidez e essa impotência, senão que houve, outrora, no homem, uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam, agora, a marca e o traço todo vazio, que ele tenta inutilmente encher de tudo o que o rodeia, procurando das coisas ausentes o socorro que não obtém das presentes, mas que são todas incapazes disso, porque esse abismo infinito só pode ficar cheio de um objeto infinito e imutável, isto é, o próprio Deus.”
A fé, diz a Bíblia, é “o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem” (Hebreus 11,1). E, claro, todas as provas da existência de Deus são tentativas de acrescentar, de modo lógico, certeza às evidências. Mas a certeza, mesmo, é fruto da fé, do ato de crer. E crer racionalmente, como nos instaram Agostinho, Anselmo e tantos outros, não invalida a ideia de que a certeza absoluta, irrefutável, ainda não foi alcançada por nós.
Crer racionalmente, como nos instaram Agostinho, Anselmo e tantos outros, não invalida a ideia de que a certeza absoluta, irrefutável, ainda não foi alcançada por nós
E o que é a parúsia, a não ser essa certeza? Assim creem os cristãos: a Segunda Vinda de Cristo será o fim (ou a renovação) de todas as coisas. A certeza absoluta que transformará tudo.
Já os ateus, em toda a sua descrença, também não podem provar nada. A teodiceia é uma aporia – baseada numa moralidade que, no fundo, esperneia por não conseguir explicar a maldade humana diante de um Deus bom, diga-se de passagem. Ou seja, eles também não têm certeza, só desejam que assim seja, pois isso os conforta diante da contradição fundamental.
A filosofia, portanto, é uma maneira de, mediante todas as respostas que busca, responder à pergunta fundamental. As religiões fazem o mesmo. A ciência, idem. E assim por diante. Não ter a resposta definitiva nos torna humildes. Aliás, não ter respostas definitivas para a maioria de nossos impasses nos torna humildes. Foi isso que fez de Sócrates o homem mais sábio da história.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




