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A compositora e musicista Florence Price.
A compositora e musicista Florence Price.| Foto: George Nelidoff/Domínio público

“Nossa música, nosso trabalho, nossa alegria e nosso alerta foram cedidos a esta terra com um sentimento fraternal. Tudo isso não vale nada? Não é fruto de trabalho e luta? Os Estados Unidos da América seriam o que são sem suas pessoas negras?” (W.E.B. Du Bois)

A célebre aforismo latino “a vida é breve, a arte é longa” não deixa de me confirmar a sua total veracidade. Quando penso que nada mais pode me surpreender, algo absolutamente extraordinário aparece e me coloca boquiaberto diante da capacidade humana de produzir Beleza. Há uma infinidade de consagrados sem os quais o mundo seria muito, muito pior; e são eles que, ao fim e ao cabo, nos redimirão. Não que, como cristão, negue o sacrifício na Cruz, mas que, como Dostoiévski, creio que é exatamente tal sacrifício que possibilita ao homem produzir arte como um “hieroglifo da verdade absoluta”, como diz Tarkovski.

No último sábado, dia 17, fui, a convite do sempre inspirador maestro Roberto Minczuk, ao Theatro Municipal de São Paulo assistir a um concerto sobre o qual eu não tinha muita informação; sabia que uma pianista virtuose se apresentaria e só. No meio da semana que antecedeu ao concerto, descobri que a pianista, Michelle Cann, era uma mulher negra. Mas só quando cheguei ao Municipal que descobri que, dentre as obras a serem apresentadas no programa, estaria o Concerto em Ré Menor em Um Movimento, da compositora, também negra, Florence Price, que eu desconhecia completamente e que seria executado por Cann.

Ao ver Michelle Cann entrar no palco, uma mulher negra de longos dreadlocks, confiante e sorridente, fui tomado por uma emoção que explodiu em lágrimas aos primeiros acordes graciosamente tocados por ela. Eis a representatividade que importa verdadeiramente. Cann, descrita pela revista canadense de música La scena musicale como “tecnicamente destemida com [...] uma sonoridade enorme e rica”, se especializou na obra de Price e, atualmente, é uma das maiores divulgadoras da sua obra, apresentando-se pelo mundo, gravando, dando entrevistas e palestras sobre a excepcional compositora, cuja obra ficou praticamente esquecida por décadas, apesar de sua extensa atividade – desde os anos 1930 até sua morte, em 1953 – e de seu reconhecimento nacional e internacional. Em 2009, grande parte de suas partituras foi encontrada numa casa abandonada que Price usava para veraneio.

Há uma infinidade de consagrados sem os quais o mundo seria muito, muito pior; e são eles que, ao fim e ao cabo, nos redimirão

Florence Beatrice Price nasceu em 9 de abril de 1889, em Little Rock (Arkansas), filha de James H. Smith, o primeiro dentista negro da cidade, e de Florence Irene Gulliver Smith, pianista, cantora e empreendedora (dona de um restaurante), ou seja, uma família pertencente à pequena elite negra do local. Como diz sua mais notável biógrafa, Rae Linda Brown, em seu livro The Heart of a Woman: The Life and Music of Florence B. Price, “os Smiths pertenciam ao escalão superior desta cidade socialmente consciente. Como a maioria dos ʻaristocratas de corʼ, os Smiths eram mulatos, ou seja, eram de herança racial mista com tez muito clara e feições caucasianas. Suas maneiras refinadas, sofisticação cultural e aparência externa atraente (do ponto de vista de uma pessoa branca) contribuíram para sua inclusão entre a elite negra e sua aceitação pelos brancos”.

Tal elite negra de Little Rock dava muita importância à educação; muitos deles estudavam nas melhores escolas e faculdades do Norte, e depois voltavam para o Sul a fim de instruir as massas. E com os pais de Florence Beatrice não foi diferente. Seu pai, “que se dedicou em sua missão de ensinar as massas de crianças negras analfabetas no Sul, fundou várias escolas para negros e ensinava à noite em duas escolas do interior”. Já Florence foi educada, primariamente, por Charlotte Andrews Stephens, filha do proeminente pastor metodista William Wallace Andrews, um homem que nasceu na escravidão, mas foi educado por seu senhor, Chester Ashley, um senador que fundou a primeira escola pública para crianças negras em Little Rock. A educação de Florence Beatrice, sob a tutela de Stephens, foi esmerada, mas foi sua mãe que, percebendo o talento da filha para a música, lhe apresentou a esse universo e investiu em sua capacitação, dando a ela suas primeiras lições de piano. Aos 11 anos, Florence vendeu sua primeira partitura a um editor.

Em 1903, entrou para o New England Conservatory of Music, em Boston, onde estudou no programa para órgão solo e docência para piano. Também estudou composição e contraponto com professores experientes como George Chadwick, que muito a incentivou. E mais: “de muitas maneiras, Chadwick reforçou sua identidade [de Price] como afro-americana e transmitiu a ela, por meio de suas próprias composições, atitudes positivas em relação à música negra. Ao mesmo tempo, Florence Beatrice descobriu que compor era libertador, um meio pelo qual podia se expressar honestamente”. Isso fez com que ela não tivesse medo de ser ousada em suas composições, utilizando, desde o início, várias plantation melodies (melodias cantadas por escravos nas plantações), escritas à maneira da música folclórica afro-americana. Ironicamente, como diz Rae Linda Brown, “por muito tempo essas músicas foram evitadas pela classe média e alta negra, mas Price as abraçou e incorporou apaixonadamente em muitas de suas composições”.

Após se formar, com honras, em 1906 – ou seja, obteve duas graduações em somente três anos –, Florence Beatrice voltou, como era costume, para Little Rock a fim de ajudar na educação das crianças da cidade. Mas em 1910, aos 23 anos, poucos meses após a morte de seu pai, decide se mudar para Atlanta, aceitando o prestigioso cargo de Chefe do Departamento de Música, na Clark University. Em Atlanta conheceu o advogado Thomas Jewell Price, com quem se casou – e do qual adotou o sobrenome, que manteve mesmo após o divórcio, em 1931, após uma sucessão de agressões do marido. Um mês após separar-se de Thomas, com quem teve dois filhos, Florence Price se casou com o agente de seguros Pusey Dell Arnet, do qual se separou em 1934, por motivos desconhecidos e de quem, ao que tudo indica, nunca se divorciou.

Price começou a trabalhar em sua primeira sinfonia (em Mi Menor) em 1931, e a terminou no fim do ano seguinte, submetendo-a ao famoso Rodman Wanamaker Symphony Competition, junto com outras duas composições, uma sonata e uma fantasia. A sinfonia e a sonata venceram o concurso. E foi em Chicago, então, que sua carreira começou, de fato, a florescer. Diz Brown:

“No início dos anos 1930, Price havia se tornado uma compositora séria, cujas habilidades foram sem dúvida fortalecidas e aceleradas pelas muitas oportunidades que teve de ouvir sua música executada. Ela escreveu em todos os gêneros, exceto ópera, produzindo obras para piano, órgão, voz, conjuntos de câmara, orquestra e coro, e fez arranjos de spirituals para voz e combinações instrumentais. Sua música era tocada regularmente por um círculo profissional de amigos e colegas em Chicago, bem como por alguns dos principais cantores de concerto da época, incluindo Marian Anderson, Blanche Thebom, Roland Hayes, Abbie Mitchell e Harry Burleigh. Pianista e organista talentosa, Price estreou muitas de suas próprias obras para piano e órgão. Suas obras em grande escala também foram executadas pelos principais conjuntos da área de Chicago.”

Florence não tinha medo de ser ousada em suas composições, utilizando, desde o início, várias plantation melodies (melodias cantadas por escravos nas plantações), escritas à maneira da música folclórica afro-americana

Ela também participou de muitas associações de artistas, de artistas brancos e negros, e sua pele clara lhe abriu muitos espaços que não eram muito bem-vindos aos retintos; inclusive, quando foi estudar em Boston, sua mãe, tentando driblar a discriminação, alugou-lhe um apartamento caro, com uma empregada, e recomendou-lhe que se apresentasse como descendente de mexicanos. Ela foi a primeira membra negra da Illinois Federation of Music Clubs, do Chicago Club of Women Organists e do Musicians Club of Women. Nas associações negras, tais como a National Association of Negro Musicians, ela teve uma atividade bastante intensa.

E foi em Chicago que ela começou a trabalhar no Concerto em Ré Menor em Um Movimento [eis, aqui, uma apresentação com a própria Michelle Cann e a Orquestra Sinfônica das Forças Armadas dos EUA], que vi e ouvi, em estado de graça, no Municipal; um concerto, na definição de Brown, Afro-Romântico (no sentido do Romantismo musical e literário). Apesar de ser uma obra em três seções, não foram por ela categorizadas como movimentos, como é comum nas obras sinfônicas, pois foge ao modelo tradicional europeu. Minha ignorância técnica agradece a ajuda de sua biógrafa, que foi musicóloga e professora nas universidades de Michigan e da Califórnia (morreu em 2017):

“Como em muitas de suas obras de grande escala, o concerto abrange aspectos da tradição romântica, mas também incorpora muitos aspectos melódicos, rítmicos e harmônicos da música afro-americana. A primeira seção, em uma forma modificada de sonata-allegro, revela um tema oriundo do spiritual; a segunda seção está na forma familiar de pergunta-e-resposta de muitas melodias folclóricas afro-americanas; a terceira seção, um rondo modificado, baseia-se no ritmo da dança juba [da tradição folclórica negra americana]. A primeira seção do concerto de Price não se conforma ao modelo clássico de um primeiro movimento de concerto, em que os temas principais são introduzidos numa dupla exposição, primeiro pela orquestra, depois pelo solo. No concerto de Price, após a orquestra anunciar brevemente fragmentos temáticos do tema principal nos nove compassos iniciais, segue-se uma cadência de piano, adiando a esperada exposição orquestral.”

Especificamente sobre a dança juba na terceira seção, Brown explica: “A terceira divisão do concerto, marcada como allegretto, abandona as melodias líricas das divisões anteriores e adota os ritmos da dança folclórica negra, pattin’ juba. [...] Embora a terceira seção do concerto de Price não seja intitulada juba, é claramente uma variação da dança popular. [...] Embora os ritmos da juba forneçam a base tanto da terceira seção do Concerto quanto do movimento “Juba” da Sinfonia em Mi Menor, a dança no concerto se destaca como um verdadeiro tour de force para a compositora. Na sinfonia, a organização formal é um rondo bastante direto. Mas no concerto, a forma é manipulada para acomodar um diálogo mais expansivo entre o piano solo e a orquestra, em que os temas são conduzidos por um turbilhão de harmonias”. O efeito que isso tem é absolutamente maravilhoso.

Em 12 de outubro de 1934, Price recebeu grande atenção para seu Concerto ao vê-lo executado pela Orquestra Sinfônica de Chicago, com regência da maestrina Ebba Sundstrom, e solo ao piano feito por sua amiga, também compositora e negra, Margaret Bonds. O crítico musical Glenn Dillard Gunn, que escrevia para o Chicago Herald and Examiner, descreveu o concerto como “brilhante”, e disse:

“Nacionalista em minha atitude em relação à arte, é um prazer para mim registrar o brilhante sucesso do concerto para piano de Florence Price apresentado por Margaret Bonds e a orquestra. Esta obra foi ouvida pela primeira vez em um dos concertos da Sinfônica de Chicago no teatro Auditorium durante o primeiro ano da feira e, conforme devidamente relatado na ocasião, representa o esforço de maior sucesso até hoje para elevar o idioma da canção folclórica nativa do Negro a níveis artísticos. Está cheio de belas melodias, derivadas desta fonte diretamente ou por imitação. O tratamento quase sinfônico dessas ideias mostra recursos abundantes, tanto harmônicos quanto orquestrais. Finalmente, a parte do piano é habilmente colocada e foi brilhantemente tocada por Margaret Bonds.”

Fico feliz que a obra de Price venha sendo novamente explorada, por ter tido a oportunidade de conhecê-la e trazê-la aos meu sempre atentos leitores

Entretanto, apesar do enorme sucesso e reconhecimento que Price recebeu à sua época, sua vida não foi linear. Passou momentos de bonança, mas também de muitas tempestades. Fora as separações e as constantes mudanças, sua vida financeira também era extremamente instável. Após a separação de Pusey Dell Arnet, sua situação financeira se agravou e teve de buscar ajuda de amigos. Recebeu guarida, com seus dois filhos, primeiramente de T. Theodore Taylor, organista da igreja em que congregava – Price tinha uma vida piedosa bastante ativa e jamais deixou de ir e tocar na igreja –; depois, da filantropa Estelle Bonds, mãe de sua amiga Margaret Bonds. “Estella Bonds”, diz Brown, “era um dos pilares da comunidade negra; artistas, músicos, poetas, escritores e dançarinos, todos conspirando para apoiar uns aos outros, frequentavam sua casa. A casa de Bonds costumava ser palco de shows informais de moradores de Chicago ou artistas negros que passavam pela cidade. Outros iam apenas para compartilhar da comunhão”.

Depois, ela conseguiu certa estabilidade vendendo partituras para ensino de piano – mesmo sentindo, vez por outra, que estava se vendendo. Sua timidez e humildade a impediam de ser ousada na procura por oportunidades e, não raro, suas tentativas eram frustradas. Ela recorreu ao seu amigo Henry S. Sawyer, que trabalhava para o famoso editor Theodore Presser, e conseguiu a publicação paga de algumas de suas partituras. Na ocasião, por causa da demora na publicação, ela pensou que seu trabalho não havia sido aceito, mas ele a encorajou, dizendo: “Como você deve ter suspeitado, eu estava totalmente ciente do que estava acontecendo no departamento de publicação em relação às suas composições, mas fico feliz em dizer que elas venceram por mérito próprio e provavelmente teriam sido aceitas se eu não tivesse interferido. Tudo o que fiz foi contar a eles algo sobre você e que tinha muita fé em sua capacidade final de fazer o bem. Quando soube que os três números seriam aceitos, fiquei tão satisfeito como se fossem meus”.

Seguiu trabalhando diligentemente e, numa entrevista, ao ser perguntada sobre sua satisfação em relação ao seu sucesso, ela respondeu:

“Sinto-me profundamente grata pelo progresso, mas satisfação... não, nenhuma. Nunca estou totalmente satisfeita com o que escrevo. Acho que os criadores nunca estão muito satisfeitos com seu trabalho. Você vê que sempre há um ideal pelo qual lutamos, e os ideais, como você sabe, são elusivos. Sendo de essência espiritual, eles escapam de nossas mãos humanas, mas nos conduzem, e eu creio muito nisso, numa busca que termina, acredito, apenas aos pés de Deus, o Único Criador e fonte de toda inspiração.”

Florence Price compôs outras três sinfonias – a Segunda se perdeu –, uma Fantasia para piano e dois concertos para violino; uma série de trabalhos orquestrais, temas para corais, composições para vocal solo (com piano), arranjos para spirituals, música de câmara, uma imensa quantidade de composições para piano solo, para órgão e para violino. Ainda musicou muitos poemas de poetas negros, como Paul Laurence Dunbar e Langston Hughes, e escreveu alguns spirituals, mas nunca deixou de sentir que, por ser mulher – e uma mulher negra –, seu trabalho nunca foi devidamente reconhecido. Sua filha, Florence Price Robinson, diz que, mesmo na comunidade negra, sua mãe sofreu muitos boicotes por inveja. E quando, nos anos 1950, o reconhecimento internacional finalmente estava chegando, Price já não estava bem de saúde. Às vésperas de uma viagem para a Europa a convite de Sir John Barbirolli, regente da Halle Orchestra, em Manchester (Inglaterra), Florence Price teve um AVC e morreu, em 3 de junho de 1953, após passar dez dias internada.

Fico feliz que sua obra venha sendo novamente explorada, por ter tido a oportunidade de conhecê-la e trazê-la aos meu sempre atentos leitores. Grande parte de suas obras está, atualmente, disponível nas nas plataformas de streaming e no YouTube. Não deixe de conhecer e, como eu, se deleitar com a genialidade de Florence Beatrice Price.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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