“Na queda da sociedade aqueia o poeta encontrou mais que uma catástrofe política […] Do desastre, ele extraiu essa visão da ordem dos deuses e dos homens; do sofrimento se originou a sabedoria quando a queda se tornou canto.” (Eric Voegelin, Ordem e História – O mundo da Pólis)
O leitor que me acompanha sabe que gosto, sempre que possível, de trazer algum aspecto das aulas que ministro em meu Clube do Livro (que está com inscrições abertas aqui) para esta coluna. Já fiz isso com Georges Bernanos, Machado de Assis, Flannery OʼConnor, Lima Barreto, Liev Tolstói e Albert Camus. Os grandes gênios da história da literatura sempre têm algo a nos ensinar. Dos muitos aspectos abordados nas aulas, sempre há algo que soa contemporâneo, ainda que estejamos falando de autores tão distantes no tempo como Tolstói, Machado ou Homero. A literatura é, como eu disse em outra ocasião, “parte fundamental na formação cultural de uma nação”, e tem função civilizacional.
Homero, como todos sabemos, é um poeta lendário; há uma discussão infindável sobre a autoria não só de suas maiores epopeias – Ilíada e Odisseia –, mas também de muitos outros poemas a ele atribuídos. O que se sabe atualmente, com uma boa dose de certeza, é que a Ilíada é, de fato, uma composição individual – e o nome de Homero circula entre os estudiosos desde o século 6.º a.C.; mas sobre a Odisseia ainda pairam dúvidas a respeito de uma suposta autoria coletiva. A chamada “Questão Homérica” movimenta os círculos acadêmicos na linguística, na arqueologia e numa gama considerável de temas nos estudos literários. Homero é, como diz Otto Maria Carpeaux na sua História da Literatura Ocidental, “o maior dos poetas”. Não à toa, encontramos a clássica afirmação de Platão, nʼA República, sobre o papel fundamental de Homero na chamada educação dos gregos (paideia). Diz ele:
“Assim, Glauco [...], quando ouvires os admiradores de Homero declararem que esse poeta foi o educador da Hélade e que é digno de ser estudado no que entende com problemas da educação e das relações humanas, e também que devemos viver de acordo com seus ensinamentos, precisarás acatá-los e beijá-los como a pessoas de muito merecimento, e concordar que Homero não só é o poeta máximo, como o primeiro dos trágicos.” (607a)
Ler Homero é mergulhar não somente no espírito grego das epopeias e dos mitos, é mergulhar em nosso espírito, naquilo que há de mais profundo em nosso e ser e o que nos faz sermos seres humanos
Essa afirmação de Platão se torna ainda mais importante quando sabemos que a posição dele em relação a Homero e outros poetas era ambígua, pois estes, segundo ele, compunham “fábulas perigosas”, que apresentavam os deuses como portadores de sentimentos humanos. Para ele, “não deve ser dito, em absoluto, que os deuses declaram guerra a outros deuses, armam ciladas uns para os outros e se combatem entre si, o que, aliás, não é verdade, caso nos empenhemos em que os futuros guardas de nosso burgo considerem desonroso criar inimizades recíprocas por motivos fúteis” (378c). A poesia deveria passar por um processo de moralização, a fim de infundir somente sentimentos adequados às crianças.
Não quero entrar nessa celeuma aqui, mas é óbvio que não devemos levar a discussão platônica para além do contexto em que ela foi realizada. O anacronismo, nesse caso, é nosso algoz. Platão era um homem sábio e, caso não visse importância em Homero, Hesíodo e outros poetas da Antiguidade, não os citaria e não concordaria com a afirmação – que, ao que parece, era comum em sua época – de que o Homero era o educador de toda a Grécia e que “devemos viver de acordo com seus ensinamentos”.
Mas por que essa afirmação seria verdadeira? O que torna Homero essa figura tão importante para a educação de um povo inteiro? O que confere ao lendário aedo tamanha responsabilidade? Creio que a primeira coisa que precisamos entender é que estamos falando de 2,8 mil anos antes de nossa era. Portanto, é praticamente impossível compreender, na realidade, o que Homero queria dizer, mesmo porque até o conceito de educação deveria ser outro. Mas é possível fazer um exercício de imaginação a partir da própria poesia homérica. Por exemplo: do que trata a Ilíada? Do que trata a Odisseia? G.K. Chesterton disse, num de seus ensaios magistrais, que “a Ilíada só é grande porque toda vida é uma batalha; a Odisseia, porque toda vida é uma jornada; o Livro de Jó, porque toda vida é um enigma”. Ou seja, tais obras se tornaram, ao longo do tempo, antes de tudo, símbolos; mas, em sua época, não só explicavam o mundo, mas o comportamento humano e sua relação com a realidade. Como diz Carpeaux:
“A Ilíada e a Odisseia eram usadas, nas escolas gregas, como livros didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o gosto literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo. Para os antigos, Homero não era uma obra literária, leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os homens de letras. Na Antiguidade também, assim como nos tempos modernos, Homero era indiscutido: mas não como epopeia, e sim como Bíblia. Era um Código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis. ‘Homero’: isto significava a ‘tradição’, no sentido em que a Igreja Romana emprega a palavra, como norma de interpretação da doutrina e da vida.”
A leitura profunda de Homero pode nos educar no sentido que a arte em geral nos educa. Esse conhecimento imediato, que atinge o mais profundo do nosso ser e nos faz não só compartilhar da “cólera [...] funesta de Aquiles Pelida”, mas também de sua intransigência e rebeldia; notar as ambiguidades de um líder como Agamemnon; também louvar a bravura de um Heitor, que, mesmo sabendo que morreria pelas mãos do herói grego, encara o embate com determinação e honra. Toda a saga fantástica de Ulisses, na Odisseia, em sua volta para Ítaca, onde sua esposa Penélope resiste a uma turba de assediadores.
Nesse sentido, podemos compreender a função pedagógica de Homero e as razões do título de educador da Hélade. Werner Jarger, em seu monumental Paideia, compreendeu como poucos a questão: “A arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual. É o que os gregos chamaram psykhagogía. Só ela possui ao mesmo tempo a validade universal e a plenitude imediata e viva, que são as condições mais importantes da ação educativa. Pela união dessas duas modalidades de ação espiritual, ela supera ao mesmo tempo a vida real e a reflexão filosófica”. Por isso Homero “já não é um simples divulgador impessoal da glória do passado e de suas façanhas. É um poeta no sentido pleno da palavra: intérprete e criador da tradição”.
Ler Homero é mergulhar não somente no espírito grego das epopeias e dos mitos, é mergulhar em nosso espírito, naquilo que há de mais profundo em nosso e ser e o que nos faz sermos seres humanos. Como diz Andrei Tarkovski, “se a arte carrega em si um hieróglifo da verdade absoluta, este será sempre uma imagem do mundo, concretizada na obra de uma vez por todas”. Homero é a imagem do mundo e da realidade humana condensadas, e sua obra continuará fazendo parte dos fundamentos de nossa civilização. O problema é: quem quer ler Homero atualmente?
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