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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Caixinhas ideológicas

Ser uma coisa ou outra?

carvalho ideologia
Ilustração de Auguste Vimar (1851-1916) para a fábula "O carvalho e o caniço". (Foto: Domínio público)

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“E verdade que não somos estrangeiros, mas, muito nos falta para vencermos, em vista da nossa grande falta de coesão completa, e, é esta falta de união que tem sido a preocupação máxima de O Clarim dʼAlvorada nestes cinco anos de Clarinadas.” (José Correia Leite)

A citação em epígrafe foi retirada de uma entrevista de José Correia Leite – já outras vezes citado nessa coluna (aqui, por exemplo) –, que foi um dos ativistas negros mais importantes do século 20, fundador da Frente Negra Brasileira e dos jornais A Chibata e Clarim dʼAlvorada. Morreu em 1989, aos 88 anos, após mais de 60 dedicados à luta contra o racismo e por uma maior integração social, política e econômica da população negra no Brasil. Sim, porque o leitor pode não saber, mas, no Brasil, como eu sempre digo, ser negro é diferente de não ser. Ser proibido de treinar atletismo num clube social, em São Paulo, por ser negro – como aconteceu com meu pai nos anos 1960, por exemplo –, não é uma coisa que se pode ignorar. Disseram a ele: “aqui não entra preto”.

No entanto, os tempos de Correia Leite ficaram para trás. Ele, apesar de ter sempre se reconhecido como uma pessoa de esquerda, um socialista, tinha posições que, atualmente, o colocariam com facilidade na categoria de conservador. Mesmo porque, como ele diz, foi “simpatizante, por muito tempo, do comunismo porque achava que de fato havia uma desigualdade muito grande entre ricos e pobres”, e não demorou muito para que ele reconhecesse uma especificidade nos problemas relacionados ao negro, que não eram contempladas no comunismo. “O comunista”, como ele diz, “sempre entendeu que não havia questão racial, não havia causa de negros. A questão era econômica, de classe. O proletariado era tão sofrido, tão explorado, quanto o negro. Eu nunca concordei com isso”.

As pessoas, sobretudo na internet, estão buscando por confirmação daquilo que já pensam, e querem que todos sejam um espelho de seus posicionamentos muitas vezes arraigados

Mais do que isso, quando intelectuais de esquerda apareceram para lhes oferecer ajuda, ele afirmou: “nós dispensamos o auxílio porque não queríamos o trabalho com política, questões ideológicas. Nosso trabalho era puramente cívico e de homenagem aos nossos antepassados que sofreram na escravidão e, principalmente, aos elementos que lutaram para a realização do 13 de Maio de que se estava comemorando o cinquentenário”. Ele dizia que o negro não poderia estar dividido em partidos políticos, que a luta do negro “era uma”. Também criticará a utilização das datas comemorativas, em que se poderia discutir questões importantes, para bailes e distrações: “formavam-se sociedades beneficentes, mas logo se tornavam sociedades de baile e já ia tudo por água abaixo”; e complementa: “pagode e idealismo são coisas perfeitamente distintas”.

A essas alturas o leitor pode estar se perguntando: “por que ele está dizendo isso?” Porque fui convidado para participar do podcast Mano a Mano, apresentado por Mano Brown, do Racionais MCʼs. Um programa premiado e sobre o qual também falei muitas vezes nessa coluna (aqui, por exemplo), comentando algumas entrevistas. Pois chegou a minha vez. Como todos sabem, Brown tem um posicionamento mais à esquerda e quase sempre leva convidados que pensam mais ou menos como ele; talvez não por vontade própria, mas por afinidade ideológica da própria produtora. Foram poucos os convidados declaradamente diversos que participaram do programa; e a audiência, obviamente, também tem viés.

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Minha participação foi ótima. Falamos sobre muitas coisas, eles fizeram muitas perguntas sobre meus posicionamentos, sobre minha visão de mundo etc.; mas, no fim, não aprofundamos quase nada. E isso é óbvio: numa conversa aberta, os assuntos vão se intercalando – às vezes se atropelando mesmo – e muitos temas ficam mais ou menos no ar, sem uma resposta definitiva. Mas gostei muito do resultado e penso que eles (Brown e sua assistente, a jornalista Semayat Oliveira) também. Mas...

O público, entretanto, não está muito satisfeito. Para além dos xingamentos – e é possível ler muitos na área de comentários do episódio –, muitos ouvintes acharam que não respondi as perguntas que me fizeram, que fiquei constrangido, que fui colocado contra a parede em meus posicionamentos “contraditórios” etc. Numa de minhas redes sociais, uma mulher comentou: “até agora estou tentando entender o que é ser de direita pra você. Qualquer pergunta que eles faziam, sua resposta era ʻpode terʼ, ʻnão necessariamenteʼ, ʻnão está diretamente relacionadoʼ. Não conseguiu responder nada”.

Não posso dizer que não entendo a confusão da moça. As pessoas, sobretudo na internet, estão buscando por confirmação daquilo que já pensam, e querem que todos sejam um espelho de seus posicionamentos muitas vezes arraigados – pelo menos no ambiente on-line. Não admitem o contraditório, o incerto, os “gestos de reticência”, como diria Mário Vieira de Mello. Ou você é isso ou é aquilo; ou pensa assim, ou assado. Ou é de esquerda ou de direita – colocando esquerda e direita não dentro de seus conceitos amplamente categorizados, mas em suas definições particularíssimas.

Nenhum posicionamento político me define. As coisas que me definam não estão na política. Minha história me define. Todas as outras coisas são circunstanciais, são transitórias

Quem conhece o meu trabalho, quem ouve o que digo ou lê o que escrevo, sabe que estou longe de ter uma posição maniqueísta a respeito de muitas coisas. Mesmo aqui, nesta Gazeta do Povo, muitos leitores, por vezes, ao verem alguém como eu, que se posiciona à direita, tendo uma postura crítica a certos, digamos, setores da direita (ou mesmo a Bolsonaro), me empurram para a esquerda, pois não conseguem conceber um pensamento que não seja totalmente adesista a uma conjuntura específica.

Mas esse sou eu. Nenhum posicionamento político me define. As coisas que me definam não estão na política. A educação recebida por meus pais me define; minhas amizades e influências reais me definem; o que li e estudei a vida toda me define; os filmes que vi e as músicas que ouvi me definem; minhas conquistas e decepções me definem; minha fé me define. Minha história me define. Todas as outras coisas são circunstanciais, são transitórias.

Ninguém é obrigado a estar preso, irredutivelmente, a posição alguma porque a vida não é assim. A vida é dinâmica, contraditória, confusa. Não raro somos obrigados a desistir, mudar de opinião, contemporizar com a realidade, que sempre se impõe. As posições estanques e categóricas, na verdade, são frágeis. É como aquela fábula do carvalho e do caniço, de Esopo, cuja moral se resume em: quem não é flexível quebra ao vento das circunstâncias.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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