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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Cristianismo

Legendários: sua melhor versão deve morrer

O que é o Legendários?
Com 50 mil “legendários”, Brasil é o país com o maior número de homens que completaram o desafio. (Foto: Divulgação Legendários Brasil)

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“O indivíduo que foi chamado [por Jesus] deixa para trás tudo que possui não com o intuito de fazer algo especial, mas simplesmente por causa do chamado de Jesus, pois de outro modo não pode seguir seus passos. A esse ato não se atribui valor algum. É completamente sem sentido, insignificante.” (Dietrich Bonhoeffer, Discipulado)

Já disse aqui, nesta Gazeta do Povo, sobre o impacto que a obra Discipulado, de Dietrich Bonhoeffer, causou em mim pouco tempo depois de minha conversão ao cristianismo protestante (ou evangélico, para os íntimos). A radicalidade do chamado de Jesus Cristo apresentada por ele, numa obra escrita sob o clima tenso que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, com sua percepção de que não haveria tempo para tergiversações, e que era preciso, sobretudo, coragem de afirmar a centralidade inegociável de Cristo diante de um regime que exigia a submissão de todos, era impressionante e desafiadora.

Bonhoeffer foi enforcado, 20 dias antes de a guerra terminar, não só porque participou ativamente de dois planos para assassinar Hitler, mas porque decidiu não sucumbir, não se render ou se vender à insanidade do nazismo. O mesmo ocorreu com Franz Jägerstätter (beatificado pela Igreja Católica em 2007), um objetor de consciência – retratado brilhantemente por Terrence Malick no filme Uma Vida Oculta, sobre o qual também escrevi –, que morreu por fincar os pés na realidade e se recusar a defender um regime claramente anticristão numa guerra absurda. Tais homens foram mártires cristãos modernos, que compreenderam o sentido de graça preciosa, criado por Bonhoeffer (na obra supracitada), em contraposição à graça barata. A graça é preciosa, diz Bonhoeffer, “sobretudo porque foi preciosa para Deus, porque lhe custou a vida de seu Filho [...]; e portanto não pode ser barato para nós o que custou caro para Deus. É graça, sobretudo, porque Deus não considerou que seu próprio Filho custasse caro demais para pagar por nossa vida, e assim o deu por nós”.

Esses homens, assim como as carmelitas de Compiègne – cujo martírio, por não se curvarem à nefasta Revolução Francesa, foi retratado, de maneira brutal e emocionante, na peça O Diálogo das Carmelitas, de Georges Bernanos –, ou mesmo a coragem avassaladora de Desmond Doss, o soldado que, sem dar um tiro sequer, salvou dezenas de companheiros na Batalha de Okinawa – retratado por Mel Gibson sem seu excepcional Até o Último Homem –, e muitos outros na história foram pessoas que entenderam o chamado de Cristo e fizeram de suas vidas um sacrifício vivo a Deus. Compreenderam, como disse o apóstolo Paulo, que o verdadeiro viver é em Cristo e o morrer é lucro.

Penso que, à luz não só da Bíblia, mas da tradição teológica bimilenar do cristianismo, o Legendários é, no mínimo, controverso

Daí que, ao ver um grupo de homens que se propõe a ir para um acampamento, no alto de uma montanha, passar três dias numa espécie de teste de sobrevivência gospel cuja proposta é, segundo o site do movimento, “levar os homens a encontrar a melhor versão de si mesmos e seu novo potencial”, por meio da ideia de que eles são “homens inquebrantáveis diante do pecado, mas quebrantados diante de Deus”, soa a mim, para dizer o mínimo, estranho. Eis o tal Legendários, a nova moda evangélica brasileira. O movimento, criado na Guatemala por Chepe Putzu, um pastor formado em Administração de Empresas, com mestrado em Marketing, e autor do livro A rota do caçador: guia definitivo para homens com fome de conquista, já tem no Brasil o seu maior público fora da Guatemala e, segundo matéria desta Gazeta do Povo, “apesar do convite explícito a deixar a zona de conforto, quase 50 mil brasileiros já completaram o desafio”.

Ainda segundo a matéria, simpática ao grupo, “muitos desses homens relatam que o retiro foi um divisor de águas em suas vidas pessoais e espirituais, ajudando-os a lidar com feridas do passado, recuperar o senso de propósito e se tornarem mais presentes e amorosos com suas famílias”, através de uma maratona de três dias, que consiste em “subir uma montanha, dormir em barracas, lidar com desconfortos e desafios físicos com direito apenas a um bastão de caminhada e o apoio de outros homens. Tudo isso em meio a momentos de oração e pregações sobre a identidade masculina à luz da Bíblia”, cujo objetivo “foca em resgatar valores tradicionais, mira em temas como masculinidade, paternidade e família e, de quebra, inclui estética e símbolos que remetem ao militarismo”. Ah, e a matéria também diz que o movimento “passou a desagradar setores ditos ʻprogressistasʼ da igreja evangélica”.

Bem, não sou nem nunca fui ligado a setores progressistas da igreja evangélica e jamais fui progressista, mas penso que, à luz não só da Bíblia, mas da tradição teológica bimilenar do cristianismo, esse movimento é, no mínimo, controverso. A começar pelo propósito. Qual seria a minha “melhor versão” segundo as Escrituras? Paulo – não eu, o apóstolo – não deixa dúvidas: “Pois quê? Somos nós mais excelentes? De maneira nenhuma, pois já dantes demonstramos que, tanto judeus como gregos, todos estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só”. (Romanos 3,9-12); e, adiante, reafirma que “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (v. 23). Ou seja: minha melhor versão (para mim) ainda é a pior versão diante de Deus. Se fosse possível, a mim, encontrar a minha melhor versão, não precisaria de Cristo.

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E não adianta a justificativa de que esses homens vão a esse ironman crente para buscar a Deus. O livro do fundador do movimento diz, no título, que quer formar homens com “fome de conquista”, e a descrição do conteúdo, no site da editora Relevantes, que publicou a edição brasileira, diz que o objetivo do grupo formado pelo marqueteiro é desafiar os homens “a escalar a montanha para encontrar-se com o Legendário número 1 e, a partir daí, curar o coração para desenvolver o seu potencial em todas as áreas da vida”. E que “não é por acaso que ele escreveu um livro cuja essência é desafiar os homens a se reconciliar com o chamado que todos têm para caçar presas maiores em todas as áreas da vida”.

Supondo que, para eles, o “Legendário número 1” seja Jesus Cristo, o objetivo desses homens é encontrá-lo para “desenvolver o seu potencial em todas as áreas da vida” e “caçar presas maiores”? Para além da heresia em denominar Jesus pelo que ele jamais intentou ser, tais objetivos são uma evidente negação do Evangelho de Cristo. E posso provar de uma maneira tão moderna quanto a pretensão dos nossos Legendários: usando o ChatGPT.

Digitei no prompt: “De acordo com a Bíblia, qual é a obra de Cristo na minha vida? Mostre com versículos”.  Eis as respostas:

1. Ele te salvou: Cristo veio para te resgatar do pecado e te dar vida nova. (Lucas 19,10; Efésios 2,8);
2. Ele te perdoou: Por meio do sangue de Jesus, seus pecados foram perdoados. (Colossenses 1,14; 1 João 1,9);
3. Ele te reconciliou com Deus: Antes separados, agora estamos em paz com Deus por Cristo. (Romanos 5,1; 2 Coríntios 5,19);
4. Ele te deu nova identidade: Você agora é uma nova criação, com uma vida transformada. (2 Coríntios 5,17; Gálatas 2,20);
5. Ele caminha com você: Cristo não apenas te salvou, mas continua ao seu lado diariamente. (Mateus 28,20; Salmos 23:1);
6. Ele te dá esperança eterna: A obra de Cristo aponta para a vida eterna com Ele. (1 João 2,25; João 14,2-3).

Minha melhor versão (para mim) ainda é a pior versão diante de Deus. Se fosse possível, a mim, encontrar a minha melhor versão, não precisaria de Cristo

Curiosamente, nada sobre conquistas ou caçadas mirabolantes. Só arrependimento, perdão, reconciliação, transformação e esperança. Cristo não nos chama, como diz Bonhoeffer (em complemento ao texto da epígrafe), “com o intuito de fazer algo especial”, não há “um objetivo ou um ideal a ser alcançado”. E completa:

“Uma vez chamado, o ser humano tem de abandonar a existência que levava até então. Sua única tarefa passa a ser ʻexistirʼ, no sentido estrito do termo. Tem de abrir mão de tudo que viveu; o que é velho deverá ficar para trás. O discípulo deixa sua relativa segurança de vida e segue para a completa insegurança (isto é, na realidade, para a absoluta segurança e proteção da comunhão com Jesus); deixa uma situação aparentemente previsível e calculável (mas, na verdade, muito imprevisível) para a imprevisibilidade, para o acaso total (quer dizer, para a única coisa que é necessária e previsível); deixa o domínio das possibilidades limitadas (isto é, de fato, das possibilidades infinitas) para o domínio das possibilidades infinitas (ou seja, para a única realidade libertadora).”

Então o que ocorre, na verdade, é que esses homens estão completamente cheios não do Espírito de Deus, mas do espírito da pós-modernidade. Tal espírito deseja, antes de qualquer coisa, conciliar o velho e o novo homem; deseja colher o melhor dessa terra (Isaías 1,19), ignorando completamente que a “multidão de sacrifícios” (v. 11) – buscar a melhor versão, desenvolvimento de potenciais ou a caça de presas maiores – de nada serve, é abominação. A promessa que Cristo nos deixou não tem a ver com conquistas materiais, com vitórias políticas ou ideológicas. O espírito ao qual esses homens estão submetidos é, também, uma trindade, só que terrena. Trata-se da pluralização, da privatização e da secularização – já tratadas por mim noutra série de artigos – que tão bem nos expôs o teólogo Rubem Amorese em sua obra Icabode – Da consciência de Cristo à mente moderna.

Essa trindade secular, chamada por ele de tripé estruturador, leva as pessoas, diante de um imenso supermercado de opções – denominações, pastores, estilo musical, linha teológica, movimentos, modismos etc. –, a escolherem o tipo de fé que querem para si, aquilo que as faz “se sentir bem”, e, em seguida, privatizar sua opção como algo absolutamente individual. Não há, nessa decisão, qualquer amparo teológico ou doutrinário comprometido com os fundamentos da fé consolidados há séculos. O que há, na verdade, é uma rebelião e uma tentativa de antecipar a promessa de Deus – a vida eterna (1 João 2,25) – para o aqui, agora. O evangelho de Cristo é secularizado a fim de satisfazer o desejo (pecaminoso) por desafios e conquistas materiais.

O discipulado de Cristo não nos chama para conquistar nada, mas para, simplesmente, morrermos para o mundo

Um dos participantes do desafio (um ex-BBB), que não sai barato – e que, na lógica mundana do dinheiro chama dinheiro, tem atraído uma quantidade imensa de pseudocelebridades –, após receber críticas por sua participação, decidiu falar sobre o encontro em suas redes sociais. E uma das coisas que ele disse dá perfeita razão à análise de Amorese: “Não deboche nem critique a fé do outro. Fé se vive. Fé transforma. Fé não se explica”. Ou seja, se for questionado, não é mais necessário ser capaz de “responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3,15); basta dizer “a fé se vive” e ignorar toda a tradição cristã que buscar explicar a fé – que vem desde os Pais da Igreja até os filósofos cristãos da atualidade (como Alvin Plantinga, Peter Kreeft, William Lane Craig e outros). É só seguir o evangelho de Chepe Putzu e ser feliz.

Nada contra esses homens desejarem ser maridos, pais ou até profissionais melhores. Mas, no momento em que aceitaram (ou aceitarem) Jesus como seu senhor e salvador, a primeira coisa que devem fazer é renunciar a toda pretensão humana de “ganhar o mundo” e seguir o que a Bíblia nos ensina. O discipulado de Cristo não nos chama para conquistar nada, mas para, simplesmente, morrermos para o mundo. Nossas realizações terrenas, que são desejáveis, devem ser buscadas por nosso empenho e dedicação. Mas o Evangelho não nos garante sucesso algum nessa empreitada. A única garantia que temos é que Ele estará conosco todos os dias de nossa vida (Mateus 28,20), em nossas vitórias e em nossas derrotas. Ser um pai, um marido e um profissional melhores não tem a ver com desafios físicos ou emocionais, com mudanças repentinas de mindset, à moda dos coaches; tampouco com encontrar nossa “melhor versão” ou com “caçar presas maiores em todas as áreas de nossa vida”; tem a ver com uma vida inteira aos pés da Cruz, com uma entrega diária de nosso eu a Cristo e com a profunda compreensão teológica dos fundamentos da fé.

Para que isso seja possível, é necessário que Ele cresça e nós diminuamos (João 3,30), e que nossa melhor versão, definitivamente, morra.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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