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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Glamourização da pobreza

Quem tem medo da desfavelização do Brasil?

favelas
Favela do Moinho, no centro de São Paulo. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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“Eu sou do pico da colina maldita / Vim pro asfalto pra cantar partido alto / E se você não acredita / Fiz um verso de improviso / Só para ver como é que fica.” (Bezerra da Silva, Colina Maldita)

“Pode crê, no gueto tem essa desvantagem / Esse é o começo e o fim da malandragem / Contagem é feita nos dedos / Os mano que morreu, quem não perdeu um camarada seu / F*deu mano, a vida não é boa como parece / Dia após dia a droga e o tráfico cresce / Fecha uma boca e abre duas / Pra reforçar, o domínio continua / Nas ruas o clima tá tenso, tem polícia / Um corpo no chão a espera da perícia / Notícia que a mãe já esperava até então / O pai é ausente, só resta o irmão, c*zão / Sem chance, essa vida eu não quero / A minha mãe em primeiro lugar é o que eu quero.” (Edi Rock, na música A Lei, do RZO)

No artigo da semana passada tratei da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, que conta uma história que se passa numa fictícia comunidade negra e pobre do sul dos Estados Unidos. A ópera é um exemplo de como um contexto de miséria e desigualdade pode ser rico em cultura e arte; mas não só como tema, também como fonte de criatividade e resistência daqueles que nele vivem. Praticamente todos os ritmos musicais modernos nasceram em contextos de pobreza: jazz, gospel, blues, rock, rap, reggae, ska, afrobeat, samba e mesmo a bossa nova, que nada mais é do que um “samba muito moderno”, como disse João Gilberto. Dostoiévski falava sobre a pobreza na Rússia czarista; Carolina Maria de Jesus foi uma escritora favelada.

No Brasil atualmente há mais de 12 mil favelas, espalhadas por mais de 600 municípios, e jamais deveríamos ter aceitado a normalização disso

Essa introdução serve para mostrar ao leitor o quanto a pobreza pode ser matéria-prima de riquíssima cultura, e quanto o mundo ganhou, sejamos honestos, com o sofrimento de milhões de pessoas – que, muitas vezes, não ganharam nada. A pobreza, a desigualdade profunda, a fome, a violência; a falta de educação formal, de saneamento básico, de sistema de saúde; toda sorte de vulnerabilidades presentes nas favelas e comunidades periféricas foram responsáveis, até pelas críticas que fizeram a elas, por tornar a nossa vida melhor. E também encheram os bolsos de muita gente (mormente de produtores e empresários, e menos dos artistas, é bom frisar).

Quantos não cantaram A Change Is Gonna Come, Saudosa Maloca e O Homem na Estrada a plenos pulmões? Quem não se emocionou com as desventuras de Makar Diévuchkin e Varvara Aleksêievna, em Gente Pobre, de Dostoiévski? Ou mesmo com a fome angustiante de Carolina Maria de Jesus em seu diário autobiográfico Quarto de Despejo? Sem falar nos filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite, que internacionalizaram a favela como um local pitoresco.

Entretanto, no Brasil atualmente há mais de 12 mil favelas, espalhadas por mais de 600 municípios, com uma população de mais de 16 milhões de habitantes – ou seja, 8,1% da população do país –, e jamais deveríamos ter aceitado a normalização disso. A glamourização das favelas produzida pela mídia e por intelectuais em anos recentes, com suas novelas, filmes, teses acadêmicas; seu uso como campo de estudos antropológicos; a apropriação de sua cultura como fetiche (em programas como o famigerado e extinto Esquenta, da Rede Globo), inclusive transformando o discurso de resistência e autoafirmação em exaltação do absurdo e – ainda pior – defesa de facções criminosas. Sem contar o “safári humano” realizado por turistas nas favelas do Rio. Tudo isso fez com que nossa visão sobre as favelas fosse sendo positivada em seu aspecto cultural, ignorando os problemas gravíssimos que elas enfrentam. E o slogan “a favela venceu”, cantado por funkeiros, envelheceu mal, recebendo crítica, inclusive, de muitos favelados – como o recém-famoso youtuber Mochileiro Ricky, de São Paulo.

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Outro aspecto importante dessa discussão é que a maioria das favelas do Brasil nem sequer tem esse componente cultural presente nas favelas do Sudeste – Rio e São Paulo, sobretudo. Muitas favelas do Norte e Nordeste são precaríssimas, ainda abrigam pessoas em barracos de madeira e palafitas, sem saneamento básico ou luz elétrica. Aliás, os cinco municípios com mais de 50% da população vivendo em favelas estão nessas regiões – Vitória do Jari (AP), 69,25%; Ananindeua (PA), 60,17%; Marituba (PA), 58,68%; Belém (PA), 57,1%; e Manaus (AM), 55,8%. O Rio de Janeiro, que nos impressiona por suas favelas midiáticas, está “só” em décimo lugar dentre as capitais mais favelizadas, apesar de favelas como a Rocinha abrigarem mais de 72 mil pessoas. Paraisópolis, em São Paulo (que está em 15.º lugar), tem 58 mil habitantes.

Sem contar que, como afirma matéria recente desta Gazeta do Povo, o Brasil tem o maior índice da população sob jugo do crime na América Latina; outra afirma que 23 milhões de pessoas estão em áreas dominadas por 72 facções e milícias. Nem precisamos dizer que a imensa maioria dessas pessoas vive em favelas e periferias. O crime organizado e as milícias mandam e desmandam em regiões inteiras do país como um Estado paralelo. Há favelas em que serviços básicos, como tevê a cabo, internet e gás são fornecidos, sem possibilidade de recusa, pelas milícias. Algumas facções criminosas cobram impostos dos moradores. E, por mais que os institutos de pesquisa, apinhados de militantes do abolicionismo penal e que recebem dinheiro de organizações internacionais, relutem em divulgar, sabemos que a maioria dos 300 mil jovens que morreram assassinados no Brasil nos últimos dez anos, pereceram pelas mãos do crime organizado.

Os únicos interessados em manter as favelas no Brasil parecem ser as facções criminosas e os intelectuais progressistas

Com tudo isso, a pergunta-título desse artigo parece ter resposta certa. Os únicos interessados em manter as favelas no Brasil parecem ser as facções criminosas e os intelectuais progressistas. Qualquer outra pessoa, favelada ou não, que defenda a permanência das favelas por causa do riquíssimo “caldo cultural” que delas emana é um sádico.

Amo grande parte da cultura que foi criada e difundida pelas favelas e periferias; mas é o mínimo, inclusive como cristão, querer que as favelas acabem e que seus moradores sejam tratados de forma digna pelo Estado, tendo acesso a moradia e saneamento básico decente e longe das garras do crime; que suas crianças e jovens possam chegar à vida adulta em segurança, com educação de qualidade, sem serem alvos do aliciamento do tráfico e das balas perdidas nos incontáveis tiroteios que sitiam moradores; que os becos sejam trocados por ruas, os barracos por casas, a insegurança por liberdade. Por isso, reitero: devemos aceitar, felizes, que a matéria-prima artística “miséria” seja extinta para que as pessoas tenham paz e dignidade.

Desfavelizar o Brasil deve ser uma política de Estado. O Estado brasileiro deveria fazer um pacto de desfavelização – e de combate ao crime organizado –, a fim de libertar esses milhões de cidadãos seus da precariedade e da insegurança. Isso não deveria causar escândalo em ninguém. A arte e o talento encontrarão outros caminhos para se manifestar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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