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“A Pátria é um grande lar doméstico; a nação é uma grande família formada pela agremiação de milhares de famílias. O bom patriotismo demonstra-se pela dedicação a esse grande lar e a essa grande família.” (André Rebouças, 1896)
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Peço desculpas ao leitor por, primeiro, voltar a um assunto já tratado nesta coluna – obviamente, em outro contexto; e, segundo, por continuar evitando tratar dos temas urgentes de nossa política atual. Sei de sua importância e não os evito por covardia, mas por cansaço. Estou cansado desse samsara infindo. Mas nem por isso deixo de me preocupar com o nosso tão combalido país, e penso que só uma boa dose de patriotismo pode nos salvar. Então, não tratarei diretamente, mas indiretamente do mal que – ao que parece, perenemente – nos assola, através da ideia de patriotismo.
Cheguei a esse assunto não por acaso, mas por uma carta – na verdade, duas – enviada pelo escritor Mário de Andrade ao poeta Carlos Drummond de Andrade; leitura essa fruto, ainda, de minha obsessão por Ouro Preto e o Barroco Mineiro, uma vez que o pai do modernismo literário brasileiro foi um dos escritores que empreenderam, na Semana Santa de 1924, uma viagem de “redescoberta do Brasil”, que passou pelas cidades mineiras de São João del-Rei, Tiradentes, Mariana, Ouro Preto, Congonhas, Sabará, Belo Horizonte e Lagoa Santa.
O reduto do Aleijadinho e de Mestre Ataíde encantou de tal modo os modernistas que sua obra foi profundamente afetada por ele. Em companhia do poeta francês Blaise Cendrars, Mário e Oswald, juntamente com Tarsila do Amaral, Gofredo da Silva Teles, René Thiollier e a mecenas do modernismo, Olívia Guedes Penteado, perambularam pelas cidades, visitaram as – à época, abandonadas – igrejas e não só se encantaram, mas se deram conta da urgência de um projeto de preservação daquele riquíssimo patrimônio histórico, artístico e religioso do Brasil.
No caso de Mário de Andrade, um dos perceptíveis efeitos que essa visita à Minas Gerais causou foi o de consolidar, através do desenvolvimento do projeto modernista, a construção de uma identidade nacional pautada pela arte, pela criação de um patriotismo que seria fruto não da política, mas da cultura. Descobri isso lendo as cartas mencionadas anteriormente, nas quais o poeta paulistano transmite, em tom imperativo, o seu ideal patriótico para o país, e conclama ao amigo: “devote-se ao Brasil junto comigo”.
Mário de Andrade apela ao espírito jovem do poeta mineiro – então, com apenas 22 anos, enquanto Mário tinha 31 –, em carta de 10 de novembro de 1924, dizendo que “o natural da mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: ele creem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade”.
Ler isso me causou grande espanto, pois penso que o intento de Mário de Andrade ainda não se cumpriu e o Brasil continua a padecer de uma profunda inconsciência de suas virtudes – e defeitos (algo tratado por mim em outro artigo desta Gazeta do Povo). E o poeta continua, numa página poeticamente apaixonante e cheia de amor operoso pelo Brasil:
“Eu me sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em mim nas horas de consciência, eu mal posso respirar, quase gemo na pletora da minha felicidade. Toda a minha obra é transitória e educada, eu sei. E eu quero que ela seja transitória. Com a inteligência não pequena que Deus me deu e com os meus estudos, tenho a certeza de que eu poderia fazer uma obra mais ou menos duradoura. Mas que me importam a eternidade entre os homens da terra e a celebridade? Mando-as à merda. Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismo que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifício humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação.”
Noutra carta ele discute mais propriamente uma suposta oposição, levantada por Drummond, entre nacionalismo e universalismo – tema, aliás, de grande discussão na atualidade. Ele diz: “você fala em ʻapertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elitesʼ. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico”. Ou seja, aquilo que Rebouças, em oposição ao que está dito na epígrafe, chamou de “mau patriotismo”. No entanto, Mário de Andrade corrige o jovem amigo:
Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente, deixará de ser nacional […]. Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la. É preciso começar esse trabalho de abrasileiramento do Brasil, dizia eu noutra carta, a um rapaz de Pernambuco […]. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lambanças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.”
Concorda o leitor que o patriotismo evocado por Mário de Andrade é inteiramente cultural? Compreende que a política é o resultado e não a origem do bom patriotismo? Que não é possível criar uma identidade nacional por meio de artificialismo populista? Os grandes de nossa história descobriram isso há muito tempo. Uma pena que, insistentemente, decidimos nos orientar pelos medíocres. Mas tenho esperança de que, um dia as coisas mudem e ouçamos mais os poetas e menos os políticos.




