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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Memória e Patrimônio

O Céu de Ataíde

(Foto: Paulo Cruz)

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“Alferes / que em São Francisco de Assis de Vila Rica / derramais sobre nós no azul-espaço / do teatro barroco do céu / o louvor cristalino coral orquestral dos / serafins / à Senhora Nossa e dos Anjos; / repórter da Fuga e da Ceia, / Testemunha do Poverello, / dono da luz e do verde-veronese, / inventor de cores insabidas, / a espalhar por vinte igrejas das Minas / “uma bonita, valente e espaçosa pintura”: / em vossa admiração / bato continência.” (Manuel Bandeira, Ataíde)

Talvez não seja possível descrever ao leitor exatamente o que senti ao adentrar a nave do templo da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, e me deparar com aquele teto que eu visitara tantas vezes em fotos, do qual falara incansavelmente em aulas e palestras, mas que nunca tinha visto pessoalmente. Dizer que chorei não será uma descrição exata das sensações que me ocorreram, nem ao impulso dado à minha imaginação, tampouco às muitas reflexões que fiz naqueles muitos minutos que permaneci ali, parado, atônito, olhando para cima, num quase êxtase.

Aquela explosão celestial me arrebatou, e vi Ataíde, jovem, iniciando a pintura aos dezoito anos de idade – ainda um tanto distante da alcunha de “mestre” que receberia pela tradição –, sustentado por andaimes, talvez deitado, a aproximadamente doze metros do chão, dia após dia, por cerca de onze anos, a nos revelar as dimensões de uma celebração divina: a Assunção da Virgem – ou Coroação de Nossa Senhora da Porciúncula.

Como o atento leitor já deve saber, sou protestante. Portanto, teologicamente, a obra não me diz nada. A subida de Maria, mãe de Jesus, ao Céu, ainda virgem, após cumprir seu propósito terreno, é um dogma católico/ortodoxo. Minha atitude diante dela não é de devoção religiosa, mas estética. Não por acreditar na verdade da representação, mas por compreender o virtuosismo técnico e a engenhosidade artística da pena de Mestre Ataíde. E, sobretudo, é forçoso admitir, pela profunda espiritualidade que emana da obra.

Manoel da Costa Ataíde nasceu em 1762, em data incerta, mas foi batizado em 18 de outubro, na cidade de Mariana (MG), filho de Luís da Costa Ataíde, um militar português, e de Maria Barbosa de Oliveira, brasileira e dona de casa. Ataíde foi um dos mais importantes artistas do período colonial brasileiro, tendo exercido as atividades de pintor, dourador e professor. Atuou principalmente em Minas Gerais, com destaque para as cidades de Ouro Preto, Mariana, Ouro Branco, Itaverava, Catas Altas, Santa Bárbara, Congonhas e Caraça. Nesses locais, realizou algumas de suas obras mais célebres, como A Última Ceia, no Santuário do Caraça; A Ascensão de Cristo, na Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara; e a pintura de algumas cenas dos Passos da Paixão, de Aleijadinho, em Congonhas.

Teve patente militar, mas, ao que se sabe, nunca exerceu, de fato, tais funções, e foi membro ativo de diversas ordens religiosas e era tido como um católico devoto. Nunca se casou, mas viveu por longo período em concubinato com a parda Maria do Carmo Raimunda da Silva, com quem teve quatro filhos – dizem que serviram, filhos e mulher, como modelos de suas obras. Colaborou com Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, quase trinta anos mais velho, em diversas obras, encarnando e pintando estátuas, dourando esculturas e altares projetados ou esculpidos por ele. Estima-se que juntos tenham trabalhado em cerca de cinco obras, incluindo os retábulos da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.

Ao que parece, sua etnia/cor ainda é objeto de discussões acadêmicas. Por muito tempo se pensou, por conta de suas pinturas abrasileiradas, que ele fosse mulato; depois, acadêmicos como a profª Adalgisa Arantes Campos, grande especialista no barroco brasileiro, bateram o martelo de que ele foi um homem branco. No entanto, pesquisas recentes, como a de Fabiano Gomes da Silva, em sua tese de doutoramento Viver honradamente de ofícios: trabalhadores manuais livres, garantias e rendeiros em Mariana (1709-1750), consta que, apesar de ele e seu irmão terem sido registrados como brancos, sua mãe, Maria Barbosa, “era filha natural de Felícia Barbosa, parda forra, moradora de Passagem desde a década de 1730”. Entretanto, sendo apenas neto de uma mulher mestiça, é possível que tenha mesmo nascido branco e que sua pardice seja só fruto de uma tentativa de atribuir, anacronicamente, o conceito de one-drop rule a alguém nascido no séc. 18.

Não se sabe da formação de Mestre Ataíde, mas sabemos que, em 1821, formou a chamada Escola de Mariana, junto aos pintores Antônio Martins da Silveira e João Batista Figueiredo, do qual foi discípulo, e outros, e recebeu da cidade, no mesmo ano, o título de Professor das Artes da Arquitetura e da Pintura. Em 1818, enviou uma carta a D. João VI, solicitando a criação de uma escola de “Desenho, e Arquitetura Civil e Militar e da Pintura”, mas não foi respondido; a essa altura, a Missão Francesa já estava por lá. Uma pena, pois poderíamos ter, no barroco, o reflexo de uma grande arte verdadeiramente brasileira.

Voltando ao teto da igreja de São Francisco, em meu mergulho na obra – um mergulho para o alto, diga-se –, busquei cada detalhe, cada curva e cada movimento dos anjos músicos com seus violinos, triângulos, violas da gamba e suas flautas, instrumentos barrocos da época de Ataíde. As figuras, todas elas, mestiças, muitas de um mestiço escuro, quase preto, como Santo Agostinho – na representação dos Pais da Igreja, juntamente com Ambrósio, Jerônimo e Gregório. Os anjinhos todos rechonchudos, de lábios carnudos e cabelos crespos, e a Virgem Maria de ancas largas e uma túnica que mistura a simplicidade do rococó com as cores que têm representações de nobreza e pureza. Uma imensa liberdade artística – e uma ousadia ainda maior num Brasil colonial e escravista. E o fato de não o terem censurado por isso me diz muito sobre a noção de racismo e tolerância da época.

Como diz Luciomar Sebastião de Jesus, escultor e artista plástico, no documentário Sob o Céu de Ataíde, produzido pela Rede Minas em 2012:

“Vários pintores coloniais tinham aquela paleta servil, aquela paleta de copiar; pegar missais com estampas e sair copiando aquilo nos tetos. O Ataíde foi além da cópia; ele fez uma releitura de tudo o que existia nos missais e imprimiu ali um estilo próprio, como o Aleijadinho fez na escultura. Então, ele é um dos poucos pintores que conseguiram sair daquela paleta servil de copiar os europeus e criar algo que extrapola a arte europeia. Ele coloca nos anjos o tom da pele morena, as feições são amulatadas, e isso você não vai encontrar na Europa, só vai encontrar em Minas Gerais e nos tetos que ele bordou tão bem. O Aleijadinho e o Ataíde eram bordadeiras de igrejas, o que é maravilhoso.”

As três dimensões do céu, com o teto da igreja aberto, com oito colunas em perspectiva, cheias de adornos florais ondulados (quatro nas extremidades, como portas do templo, e quatro sustentando o céu azul com suas nuvens brancas) e dois arcos laterais menores, na parte de dentro das colunas; no centro, o Céu magnífico, divino, de dourado radiante, se apresenta milagrosamente, com a orquestra de anjos comandada por um rei Davi mulato e sua harpa, envolto em partituras, instrumentos, cantoria e êxtase. Querubins seminus bailando no Céu coroam de estrelas uma sereníssima madona negra. Num ensaio do prof. Marcos Hill, na Revista do Curso de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, ele cita o historiador Carlos Del Negro, que diz sobre a Virgem: “[...] cheia de corpo, seios volumosos, colo roliço, rosto amplo, envolve-nos de serenidade e meiguice. Formas robustas e bem proporcionadas sugerem antes beleza louçã que espiritualidade”. Acima dela, dois anjos a coroam com estrelas cintilantes. Mais extraordinário, impossível.

Só é uma pena que tanta beleza, tanta arte e tanta espiritualidade estejam tão distantes do Brasil atual. Que o barroco mineiro não comunique mais a nossa grandeza. Não quero parecer arrogante, mas, em minhas duas visitas à igreja de São Francisco durante minha viagem (ou peregrinação) a Ouro Preto, pude ter um vislumbre do quanto as pessoas que também visitavam a igreja estavam desconectadas do real valor do magnífico trabalho de Manoel da Costa Ataíde. Um problema de educação, por certo, que nem mesmo os modernistas, em sua admiração pelo barroco, foram capazes de fomentar. Como diz Manuel Bandeira, num trecho de seu poema Ataíde à venda?: “Que vale ter Ataíde / e não ter teto e parede? / Ser um sacrário de arte, / a mais pura arte mineira, / orgulho do nosso Estado / e da alma brasileira, / sem ter como restaurar / a velha casa de ensino / onde ensinamos a amar / as criações do passado?”

Que, um dia, nossas escolas recuperem o valor e a admiração por Aleijadinho, Mestre Ataíde e outros geniais artistas do barroco brasileiro, pois é nele que está a nossa beleza e a nossa essência.

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