“No passado surgiram falsos profetas no meio do povo, como também surgirão entre vocês falsos mestres. Estes introduzirão secretamente heresias destruidoras, chegando a negar o Soberano que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. Muitos seguirão os caminhos vergonhosos desses homens e, por causa deles, será difamado o caminho da verdade.” (2 Pedro 2,1-2)
Converti-me ao cristianismo evangélico em janeiro do ano 2000. Após um certo cansaço de uma vida bem agitada e um acidente de carro, decidi que precisava dar um tempo. Parei de beber e, à época, bem mais gordo, também determinei-me a uma dieta que me fez perder mais de 20 quilos. Em seguida, passei a frequentar uma igreja em que já estavam amigos de infância, convertidos anos antes de mim. Uma igreja pequena, de bairro, pentecostal, mas não denominacional, cujos líderes eram muito estudiosos, o que foi ótimo para mim, pois já era um leitor voraz e um questionador nato.
Um dos primeiros temas pelos quais me interessei foi a apologética ou defesa da fé. O início dos anos 2000 foi pródigo em igrejas e teologias questionáveis em relação a certa ortodoxia que, apesar das muitas igrejas e da falta de um centro doutrinário como na Igreja Católica, sempre existiu no meio evangélico. A tradição protestante sempre se preocupou em encontrar sua identidade teológica e doutrinária e, não à toa, as Teologias Sistemáticas e as Escolas Bíblicas Dominicais sempre fizeram sucesso entre os herdeiros de Lutero, Calvino etc. Mas nunca foi fácil manter uma unidade mínima diante dessa abertura interpretativa que o protestantismo inaugurou. Lutero mesmo, em que pesem todas as controvérsias que envolvem seu nome e suas ações, pregou muitos sermões e escreveu muitos documentos alertando para os perigos das interpretações espúrias e sem fundamentos das Escrituras.
No prefácio de seu fundamental Catecismo Maior, Lutero inicia dizendo que “não é por razões somenos que inculcamos o Catecismo com tanto empenho e queremos e solicitamos que seja inculcado. Pois vemos que, infelizmente, grande número de pregadores e pastores são muito negligentes a esse respeito, e desprezam seu ofício e essa instrução”. E em sua admoestação para que as cidades mantivessem as escolas públicas de educação cristã, defende o ensino de hebraico e grego – as línguas originais em que a Bíblia foi escrita, asseverando que “não conseguiremos preservar o Evangelho corretamente sem as línguas”. E completa:
“É algo bem diferente o caso de um simples pregador da fé e de um intérprete da Escritura ou, como diz São Paulo, de um profeta. Um simples pregador dispõe (é verdade), com base em traduções, de suficientes enunciados e textos claros para entender e ensinar a Cristo, viver uma vida piedosa e pregar a outros. No entanto, para interpretar a Escritura e tratá-la autonomamente e para combater aqueles que citam a Escritura erroneamente – para isso não tem formação; sem línguas isso não é possível. Mas na cristandade sempre se precisa destes profetas que estudam a Escritura e a interpretam e que também sejam aptos para o debate; para tanto não basta uma vida piedosa e o ensino correto.”
Mas desde então esse tem sido o maior desafio do cristianismo evangélico, e é por isso que a apologética se tornou uma atividade importantíssima dentro dessa tradição. Lutero sabia dessa fragilidade, mas pensou ser melhor que todos tivessem acesso ao texto do que mantê-lo em latim e sob o domínio exclusivo do clero. E vale dizer que a defesa da fé e da ortodoxia cristã não ocorre num vácuo interpretativo dos teólogos e apologetas, mas dentro da própria tradição cristã e seus fundamentos doutrinários transmitidos de geração em geração por teólogos reconhecidos ao longo do tempo.
Dizer que o evangelho pregado pelo (des)governo de turno é outro evangelho é não só constatar um fato, mas é dever de todo cristão sério
Entre os livros de apologética que li estão dois que ainda guardo, ainda que atualmente discorde do tom, digamos, fundamentalista dos textos. O primeiro é do pastor e teólogo Paulo Romeiro, notório apologista que foi presidente do Instituto Cristão de Pesquisas (ICP) e fundador da Agência de Informações Religiosas (Agir), duas entidades voltadas à defesa da fé. Em seu livro mais famoso, Supercrentes – O evangelho de Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade, Romeiro investe pesadamente contra a chamada confissão positiva, que nada mais é que “teologia da fórmula da fé ou doutrina da prosperidade promulgada por vários televangelistas contemporâneos, sob a liderança e a inspiração de Essek William Kenyon. A expressão ʻconfissão positivaʼ pode ser legitimamente interpretada de várias maneiras. O mais significativo de tudo é que a expressão ʻconfissão positivaʼ se refere literalmente a trazer à existência o que declaramos com nossa boca, uma vez que a fé é uma confissão”. Ou seja, a famigerada característica de pregadores neopentecostais determinarem coisas a Deus e arrogarem ao crente comum o poder de fazer Deus agir em seu favor. Romeiro, então, à luz da Bíblia, vai desmontando os fundamentos dessa teologia, condenada desde dos tempos do chamado gnosticismo primitivo.
Outro livro que li com atenção à época foi também escrito por Paulo Romeiro, em parceria com o pastor e teólogo Natanael Rinaldi, chamado Desmascarando as seitas. Nessa obra, pouco mais volumosa que o Supercrentes, os apologistas tratam mais propriamente daquelas religiões que são consideradas por muitos como sectárias do cristianismo – como os Adventistas do Sétimo Dia ou as Testemunhas de Jeová. Não obstante, novamente, eu na atualidade discordar de parte do que é dito no livro, serviu para que, no início de minha caminhada cristã, eu fosse alertado para essas questões e me mantivesse vigilante, ciente de que viver fundamentado no cristianismo bíblico é um desafio constante, e que a advertência paulina a Timóteo – “pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Timóteo 4,3-4) – segue atualíssima.
Leituras posteriores, de autores como Dietrich Bonhoeffer, Karl Barth, C.S. Lewis, Francis Schaeffer e os clássicos Agostinho e Tomás de Aquino, bem como estar inserido em comunidades e cultivar amizades que tinham o ensino ortodoxo em alta conta, aprofundaram minha fé e abriram caminho para minha formação filosófica.
Por isso, quando o (des)governo de turno se apropriou da sagrada causa do Evangelho, com o “presidente” (sim, entre aspas) repetindo versículos como se fossem jargões e se aliando àqueles mesmos pastores que, lá no início de minha conversão, já figuravam no rol dos heresiarcas e apóstatas, tive mais uma confirmação de que o propósito desse senhor, que envergonha o nome de Cristo em palavras e atos, que aceita associar o nome de Cristo a motociatas em seu apoio, que se considera um instrumento de Deus e que em sua campanha já demonstrava seu autoritarismo travestido de religiosidade (dizendo que o Brasil seria um Estado cristão), não é governar o país, mas um projeto de poder baseado na imanentização do eschaton cristão – já tratado por mim nesta Gazeta do Povo, numa série sobre religião e política; é a pretensa salvação aqui mesmo, neste mundo caído. E sentir-se, de fato, pelo nome do meio que ostenta, o messias do Brasil. Por isso recebe o apoio incondicional dos baluartes do neopentecostalismo – vertente evangélica celeiro da confissão positiva e da teologia da prosperidade – como Edir Macedo, Estevam Hernandes, Renê Terra Nova, Marco Feliciano, Silas Malafaia et caterva. Tais pastores são conhecidos pela manipulação emocional de seus fiéis e pelo discurso de dar ordens a Deus, característica encontrada também no (des)governo Bolsonaro; bem como pela sua relação com governantes a fim de obter benesses para seus negócios.
Isso ficou, mais uma vez, claro para mim no discurso delirante feito pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no evento de lançamento da campanha à reeleição de seu marido. Com o tom e o linguajar sentimental característicos da confissão positiva, Michelle foi pregando aos fiéis do bolsonarismo seu “disangelho” (como diria Nietzsche), dizendo que seu marido é “um escolhido de Deus” e que “a reeleição é por um propósito de libertação, um propósito de cura para nosso Brasil”, e que a luta é “contra principados e potestades”. Em seguida, o próprio Bolsonaro disse que se tratava de uma “luta do bem contra o mal”, destilando seu maniqueísmo – outra heresia milenar combatida desde Agostinho. Como diz o pastor e teólogo Yago Martins, em seu ensaio A religião do bolsonarismo, “esse discurso de bem contra o mal, Bolsonaro passou a usar o linguajar da batalha espiritual que é tão comum nas igrejas neopentecostais. A esquerda é então encarnada como um mal demoníaco, inimigo da fé e do bem. Vencê-la seria vencer para Deus, manifestar a vontade do Senhor no mundo, impedir as hostes do diabo”.
Por isso dizer que o evangelho pregado pelo (des)governo de turno é outro evangelho é não só constatar um fato, mas é dever de todo cristão sério que não se deixou seduzir nem pelo caráter falsamente religioso de seu mandatário nem pelo discurso do Centrão.
Direita de Bolsonaro mostra força em todas as regiões; esquerda patina
Eleições consagram a direita e humilham Lula, PT e a esquerda
São Paulo, Campo Grande e Curitiba têm as disputas mais acirradas entre as capitais
Lucas Pavanato (PL) é o vereador campeão de votos no país; veja a lista dos 10 mais votados
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião