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“Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta é São José del-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto.” (Manuel Bandeira)
Sim, estive de volta em Ouro Preto, dessa vez para duas semanas nas quais quase não saí da belíssima e aconchegante pousada em que me instalei pela segunda vez (a primeira foi em maio), pois fui a trabalho, fui escrever. Entretanto, o pouco que saí me levou a reflexões sobre o efeito não só de sair de São Paulo para um lugar mais tranquilo, mas sobre o que significa para mim esse lugar tranquilo.
Nos dois últimos dias, já com o trabalho terminado, saí para perambular pela cidade e andei por horas a fio naquelas ladeiras, beirando aquelas matas e montanhas, sem destino; ou melhor, com um destino: meu interior. A solitude e o encanto daquelas ruas foram um convite à reflexão, a passar um tempo comigo mesmo e com a profundidade de estar vivendo num tempo mítico, cercado de deuses e moradas celestes. Estar, por exemplo, diante da elíptica igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, e, sem pressa, pensar em como tudo aquilo foi construído, o objetivo e o sofrimento envolvidos, a fé operosa daqueles que, por décadas, resolutamente, construíram aquela magnífica morada para Aquele que “não habita em templos feitos por mãos de homens” (Atos 17,24), foi muito emocionante. Subir a Ladeira de Santa Ifigênia e, da escadaria da Matriz, ver a cidade banhada de sol foi como tocar o Céu.
A solitude e o encanto daquela cidade foram um convite à reflexão, a passar um tempo comigo mesmo e com a profundidade de estar vivendo num tempo mítico, cercado de deuses e moradas celestes
Foi um percurso espiritual andar por aquela cidade encrustada na Serra do Espinhaço, com sua história à la El Dorado, da corrida pela fortuna, das incontáveis minas, das picaretas, tenazes, balanças; do esgotamento do ouro, do êxodo, da pobreza, da resignação e, por fim, da estática arquitetura, do tombamento e do tempo mítico estabelecido. Como diz Bandeira em seu Guia de Ouro Preto:
“Ouro Preto conservou-se tal qual, em virtude mesmo da sua pobreza, aquela pobreza que já por volta de 1809, segundo depoimento de Mawe, fazia trocarem-lhe por escárnio em Vila Pobre o nome de sua fundação em 1711, que era o de Vila Rica de Albuquerque. Na sua decadência econômica, que remonta às últimas décadas do século 18, não houve dinheiro para abrir ruas, alargar becos, restaurar monumentos. Nas reparações dos prédios envelhecidos a economia levou sempre a alterar o menos possível.”
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E é exatamente esse aspecto, de uma cidade que parou no tempo, que é o mais encantador de Ouro Preto. Até as igrejas, um tanto mal preservadas, têm seu charme nisso também. Tudo ali remete ao passado, a um tempo em que não só o ouro, mas o sagrado era prioridade, era o motivo de mestres geniais como Ataíde e Aleijadinho terem dedicado suas vidas àqueles monumentos da arte sacra e do Barroco, eternizados por sua imaginação prodigiosa. A cidade que encantou os modernistas em sua viagem, na Semana Santa de 1924, a fim de “descobrirem o Brasil”, e, após terem encontrado toda aquela beleza em catastrófico abandono, fomentarem um projeto de preservação que acordou os governantes de sua costumeira inércia. Oswald de Andrade registrará em poesia:
Vamos visitar São Francisco de Assis
Igreja feita pela gente de Minas
O sacristão que é vizinho da Maria Cana-Verde
Abre e mostra o abandono
Os púlpitos do Aleijadinho
O teto do Ataíde [...].
A única coisa que atrapalha – e muito! – a natureza mítica de Ouro Preto são os automóveis. Há carros por todos os lados no centro histórico, que mancham a arquitetura antiga e preenchem as ruas (às vezes dos dois lados) de poluição visual e sonora que embotam nossa experiência com uma modernidade horrenda, cafona. Numa conversa com uma hóspede da pousada em que eu estava, ela me disse algo com o qual concordo integralmente: os carros deveriam ser proibidos no centro histórico, ainda mais porque destroem as ruas, mudam as pedras de lugar, trepidam e maculam a arquitetura.
A única coisa que atrapalha – e muito! – a natureza mítica de Ouro Preto são os automóveis. Os carros deveriam ser proibidos no centro histórico
Há ainda um último aspecto que me fez penetrar no tempo mítico de Ouro Preto: o povo. O mineiro é um ser humano especial, mas o ouro-pretano é mais: são como atlantes daquele lugar. São eles que sustentam a beleza, a serenidade e o mito de Vila Rica. São eles, com seu sotaque melífluo, que nos atraem e nos acalantam com seus cafés, seus queijos, seus doces de leite e suas interjeições hipnotizantes. Eles parecem, também, parados no tempo, mas no melhor sentido do termo. Eles parecem rejeitar a nossa pressa, o nosso olhar desviante, o nosso orgulho de metropolitanos. Eles nos convidam à contemplação.
O leitor talvez diga: ele está idealizando. O leitor mineiro, então, talvez solte um sonoro “nu!”. Mas essas duas semanas em Ouro Preto, mergulhado não só em trabalho, mas em sua atmosfera, em sua cultura – fui a três concertos comemorativos de 255 anos da Casa da Ópera, o mais antigo teatro em funcionamento nas Américas –, em sua história; andando incansavelmente por suas ladeiras, enamorado por suas memórias, serviram para que eu compreendesse melhor o sentido de pertencimento que tanto nos falta, que perdemos na correria das cidades mutiladas pelo progresso e pela pressa. Estou vivo de novo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




