
Ouça este conteúdo
“Onde [...] devemos buscar padrões para o juízo da beleza? Nossa busca estaria fadada ao fracasso? Em um famoso ensaio, Hume procurou alterar o foco da discussão. Eis, em linhas gerais, o que ele declarou: o gosto é uma forma de preferência, e essa preferência é a premissa, não a conclusão do juízo da beleza.” (Roger Scruton, Beleza)
Meu querido filho, ao ver, no início dessa semana, chegar em nossa casa mais um livro sobre o Barroco, disse: “esse é seu novo hiperfoco?” Pois é, confesso que estou um pouco vidrado nisso e peço a compreensão do leitor para que eu possa dividir contigo minhas reflexões. Esta coluna sempre foi um espaço – e agradeço sempre à Gazeta do Povo por isso – em que eu pude escrever sobre qualquer assunto, desde os mais políticos (que, reconheço, estão mais próximos ao gosto do leitor) até os mais particulares, em que abordo temas que me inquietam pessoalmente.
Pois esses dias me peguei pensando em Roger Scruton e seu espantoso sucesso entre a direita brasileira ocorrido há alguns anos, sobretudo pelo seu maravilhoso documentário, produzido pela BBC, Por que a beleza importa?, de 2009. Lembro-me de tê-lo visto muitas vezes, tê-lo discutido com amigos, transmitido em minhas aulas na escola, abordado em meus cursos... enfim, esse doc, de fato, marcou uma época naquele início do que se convencionou chamar de nova direita no Brasil.
Óbvio que estou falando aqui de um tempo em que a direita não havia sido completamente sequestrada pela política comezinha do dia a dia. Nos tempos em que Alexandre de Moraes só era mencionado por conta de sua constrangedora dança com indígenas em seu gabinete (era 2017). Época em que Bolsonaro era só o mito da internet, com suas respostas diretas a esquerdistas, compartilhadas com entusiasmo em páginas do quase finado Facebook. Época em que, antes de tudo, éramos um aplicado “clube do livro”, estudando autores publicados pela É Realizações – editora de direita que, aliás, fechou as portas recentemente por falta de público leitor; ou seja, abandonada pela direita que abandonou os livros. Uma pena. Mas estou tergiversando.
O barroco brasileiro é arte singular, não imitativa dos padrões europeus, mas que imprimiu uma marca inconfundível de caráter regional
O fato é que ainda estou, espiritualmente, em Ouro Preto, refletindo sobre as obras de Aleijadinho e Mestre Ataíde, e estava pensando o que Scruton acharia delas. O barroco brasileiro é arte singular, não imitativa dos padrões europeus, mas que imprimiu uma marca inconfundível de caráter regional, inclusive pela grande concentração de escravos negros e de mestiços no país, que criaram suas ordens, suas igrejas e sua arte. O Jesus loiro europeu deu lugar às representações mais parecidas com a população local, de cabelos e olhos castanhos – quando não, pardas mesmo.
A direita brasileira, se me lembro bem, no afã de criticar a arte contemporânea, bizarra por seu caráter progressista e desconstrucionista, advogou pela recuperação dos padrões de simetria e ordem da arte clássica europeia, manifestos, por exemplo, em obras como O Nascimento de Vênus, de Botticelli, ou mesmo nas monumentais cenas sacras de Michelangelo na Capela Sistina. Eu mesmo me lembro de ter recorrido a esses padrões em minhas observações sobre a beleza.
Mas como compreendermos, à luz desses padrões, os profetas assimétricos – para não dizer disformes – de Aleijadinho, no adro da igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas? Como, diante da beleza alvíssima das mulheres de Botticelli, apreciarmos a mulatice da Nossa Senhora de Porciúncula e seus angelitos negros, de Mestre Ataíde, no teto da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto? Ou a sua tumultuada Última Ceia, no Colégio do Caraça, diante da consagrada obra de Leonardo Da Vinci?
VEJA TAMBÉM:
Manuel Bandeira nos dá, em seu Guia de Ouro Preto, um exemplo do que alguns viajantes estrangeiros disseram ao visitar Ouro Preto. Ao que parece, não entenderam nada do que viram e desdenharam de Aleijadinho e do barroco brasileiro. Diz ele:
“Os viajantes estrangeiros são quase sempre insensíveis aos elementos mais profundos ou mais sutis dos costumes e do sentimento artístico dos países que visitam [...]. [Richard Francis] Burton [...] diz bobagens completamente inconsciente da grandeza criadora do Aleijadinho. Diante da frontaria de São Francisco, da qual se pode repetir o que Anatole France disse do pavilhão central do Louvre – ciselé comme un joyau d’art [esculpido como uma joia de arte] –, o seu convencionalismo de humanista ficou muito ofendido porque viu duas colunas jônicas ʻdesgraciosamente convertidas em pilastrasʼ. A propósito das colunas e pilastras que sustentam o coro de Nossa Senhora do Carmo, faz pilhéria, chamando-lhes a kind of ʻbarrigudoʼ style. Nem uma palavra para o delicioso lavatório de São Francisco. O que todos admiraram, porque lhes lembrava o belo bem aprovadinho dos palácios do Renascimento italiano, foi o edifício do antigo Paço Municipal.”
Aí vem meu questionamento: o que diriam, então, os nossos direitistas admiradores de Roger Scruton, que viram em seu documentário um esforço de salvar a Beleza em seu aspecto mais, digamos, elitista? Que entenderam sua crítica à arte contemporânea como uma rejeição a tudo o que não é feito de acordo com os ditames da proporção áurea?
É, de certo modo, aceitável que um europeu, acostumado com o estilo das obras produzidas em sua cultura, não compreenda um Aleijadinho
Bem, Scruton mesmo, em sua obra Beleza, publicada após o documentário – e que, diga-se, poucos leram e pouquíssimos entenderam, pois se trata de uma obra filosoficamente bastante exigente –, diz, quando está tratando do juízo estético, que “o gosto tem raízes num contexto cultural mais amplo, e as culturas (ao menos no sentido que aqui temos em mente) não são universais”. Ou seja, é, de certo modo, aceitável que um europeu, acostumado com o estilo das obras produzidas em sua cultura, não compreenda um Aleijadinho. E complementa dizendo que:
“Devemos reconhecer que toda tentativa de definir padrões objetivos ameaça o próprio empreendimento que se procura julgar. Regras e preceitos existem para serem transcendidos; e, como a originalidade e o questionamento das ortodoxias são fundamentais à iniciativa estética, certo elemento de liberdade é incorporado à busca da beleza, seja a beleza mínima dos arranjos cotidianos, seja a beleza superior da arte.”
Ou seja, no caso do barroco brasileiro, sobretudo de Aleijadinho, trata-se da arte brasileira por excelência, que deve ser compreendida desse modo por nós, brasileiros. Sua originalidade está, exatamente, nessa capacidade de assimilar o barroco europeu e adaptá-lo, transformá-lo e recriá-lo ao seu modo. No dizer de Mário de Andrade:
“O artista vagou pelo mundo. Reinventou o mundo. O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os primitivos italianos, esboça o Renascimento, toca o Gótico, às vezes é quase francês, quase sempre muito germânico, é espanhol em seu realismo místico. Uma enorme irregularidade cosmopolita, que o teria conduzido a algo irremediavelmente diletante se não fosse a força de sua convicção impressa em suas obras imortais.”
Acho que Roger Scruton admiraria o barroco brasileiro
Daí que, voltando a Scruton, “em questões de juízo estético, objetividade e universalidade se dissociam. Na ciência e na moral, a busca da objetividade é a busca de resultados universalmente válidos, isto é, de resultados que todo ser racional deve aceitar. No juízo da beleza, a busca da objetividade almeja formas válidas e elevadas de experiência humana – formas em que a vida do homem possa florescer segundo sua necessidade interior e alcançar o tipo de fruição que testemunhamos no teto da Capela Sistina, em Parsifal ou em Hamlet. A crítica não tem como objetivo demonstrar que você deve gostar de Hamlet, por exemplo; o que ela deseja é expor a visão da vida humana que a peça encerra, expressar as formas de pertencimento que ela subscreve e persuadi-lo do valor que estas possuem”.
Nesse sentido, Scruton não errou; estava perfeitamente consciente de que padrões estéticos dependem de contexto, e que nem tudo o que é simétrico é belo, e nem tudo o que é desproporcional é feio. E que “o juízo estético está arraigado na experiência subjetiva”, e que “podem existir regras relacionadas ao gosto; no entanto, elas não asseguram a beleza, que pode residir precisamente na transgressão”. Acho que Scruton admiraria o barroco brasileiro. Já nossa direita eurocêntrica, não tenho tanta certeza.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




