“[…] ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso sob o manto de palavras enganosas eram considerados os melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo despeito de vê-los sobreviver”. (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso)
No artigo da semana passada tratei da necessidade urgente de termos paciência, e do exemplo lendário de Dr. Fausto, cujo desejo irrefreável por poder – inclusive de resolver os problemas da humanidade – o levou a negociar a própria alma com o demônio Mefistófeles.
A verdade é que somos quase todos, de fato, ingenuamente impacientes. A tentação por tomarmos nas mãos o destino do mundo, de manipularmos o imponderável, de, na expressão bíblica, recalcitrarmos contra os aguilhões de nossa natureza imperfeita, é quase irresistível. Dos nossos interesses mais íntimos àqueles cuja finalidade é o interesse de muitos – como a política –, as implicações de realizarmos tudo apressadamente são sempre incertas e quase sempre desastrosas. Por isso, é de fundamental importância sabermos, caso não sejamos os perpetradores do caos, como conduzir nossa vida de modo que nosso desejo de restabelecer a ordem não seja transformado em hybris, em revolução. Esse foi o esforço de toda a vida daquele que é considerado por muitos o maior filósofo de todos os tempos: Platão.
Platão viveu sua juventude em meio às revoluções políticas que se sucederam à Guerra do Peloponeso, ao governo dos Trinta Tiranos e ao início da democracia ateniense. Diz ele que foi tomado pelo desejo de participar da vida política, pois pertencia a uma família de tradição na vida pública grega, que tinha entre seus membros ilustres o grande estadista Sólon. Diz ele, na famosa Carta VII (publicada pela editora UFPA) – documento autobiográfico de fundamental importância para compreendermos seu pensamento –, que tinha ilusões de que aqueles que venceram a tirania dos Trinta, ao assumirem “governariam a cidade fazendo-a passar das vias da injustiça para as da justiça, o que me despertou a curiosidade de ver como se comportariam em semelhante conjuntura”. O problema é que “o que vi foi que em pouquíssimo tempo esses homens deixaram parecida a antiga ordem de coisas com a verdadeira idade do ouro”. Ou seja, pioraram o que já estava ruim. Uma das atitudes desses novos governantes, que deixaram Platão horrorizado, foi a injusta condenação à morte – ao melhor estilo Lei e Ordem – de seu amigo e mestre Sócrates, que ele reputa ter sido “o varão mais justo do seu tempo”.
Desiludido, Platão começa a estudar, e quanto mais se aprofunda nos problemas da política grega, mais percebe que seria dificílimo reconduzir a polis à ordem, pois não era mais “administrada de acordo com os costumes e as instruções de nossos pais” – ou seja, não era só uma questão de boa vontade, mas de reorientação da consciência. Desiste de sua intenção inicial e conclui que somente por meio da verdadeira filosofia seria possível “reconhecer as diferentes formas da justiça política ou individual”; e que não cessariam os males para a humanidade enquanto não chegasse ao poder “a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes da cidade” (grifo nosso).
Assim tem início a filosofia platônica.
Importante notar, no entanto, conforme brilhantemente analisa o filósofo Eric Voegelin, no volume Platão e Aristóteles de sua obra máxima Ordem e História (publicado pela editora Loyola), que a filosofia platônica não é uma doutrina, mas sim uma “resistência de Platão à desordem da sociedade circundante e seu esforço para restaurar a ordem da civilização helênica por meio do amor à sabedoria”. Não se trata de um sistema para implantar uma sociedade ideal, mas de uma construção realizada sob contrastes, ou seja: em resistência ao ensino falacioso dos sofistas, cuja alma está em desordem, Platão oferece um vislumbre da cidade governada por aqueles cuja alma estaria ordenada de acordo com a metaxy – a consciência do fundamento divino do ser – e o amor à sabedoria. Através de um programa rigoroso de estudos, que durava mais de 40 anos (exposto em sua obra A República), os governantes platônicos – também chamados de Reis Filósofos – seriam absolutamente preparados para conduzirem a sociedade segundo a reta justiça. Mas, como também afirma Voegelin, a proposta de Platão não é facilmente analisável com a extrema pobreza conceitual que temos hoje. É necessário, antes de tudo, reconstruir os conceitos através das “experiências que engendram símbolos” – método que não nos convém analisar no momento.
Quando Platão tinha entre 60 e 70 anos, foi convidado por Díon (ou Dião), um amigo siciliano, aristocrata, associado à Academia, para aconselhar Dionísio II, o tirano de Siracusa, a maior cidade grega da Sicília. Era uma oportunidade única de colocar em prática alguns de seus ensinamentos. Platão resiste um pouco, mas acaba aceitando. Porém, é envolvido numa disputa de poder entre Dionísio II e Díon, na qual este último é exilado, depois assassinado, deixando Platão numa situação dificílima diante dos inimigos de Díon e do tirano Dionísio, que demonstrou falso interesse em aprender filosofia; era só uma questão utilitária para fortalecer o seu poder. Platão deixa Siracusa, mais uma vez, desiludido e com a certeza de que não é possível reformar politicamente uma sociedade na qual seus governantes têm a alma em desordem.
Esse é o governo dos philodoxos (dos falsos filósofos), que o historiador Tucídides denuncia em sua História da Guerra do Peloponeso (publicado pela UnB): “Geralmente os medíocres triunfavam, pois o sentimento de suas limitações intelectuais e o temor da inteligência do adversário, aliados ao receio de serem vencidos em debates com opositores mais hábeis no falar, os levavam direta e ousadamente à ação”. Os medíocres são os homens de ação, os utilitaristas, aqueles que agem por conveniência, que não desejam discutir séria e filosoficamente os problemas da sociedade, mas desejam a mudança radical, apressada, a fim de conquistarem o poder e moldarem a sociedade à sua maneira. Desses é melhor manter-se a uma distância segura.
E mais, o intelectual deve evitar as confusões desnecessárias desse ambiente político doentio. Diz Platão, ainda na Carta VII, respondendo aos amigos de Díon que lhe escreverem após a sua morte:
“[…] sempre que alguém me consulta acerca de uma situação vital, seja sobre a maneira de ganhar dinheiro, ou os cuidados que devemos dar ao corpo e à alma, se seu modo de vida me parece aceitável e que ele acolherá bem os meus conselhos na matéria consultada, com a melhor boa vontade lhe direi o que penso, sem cingir-me a uma resposta superficial por mero desencargo de consciência. Porém, no caso de nada me perguntar, ou se vir que não tomará na devida consideração meu parecer, por iniciativa própria não aconselharei essa pessoa, como também a ninguém forçarei, ainda mesmo que se tratasse de meu próprio filho […] É assim que o varão prudente precisará comportar-se em relação à pátria. Se achar que está sendo mal governada, pode falar, porém só na hipótese de não fazê-lo inutilmente e de não arriscar a vida, e sem recorrer a violência para mudar a constituição local, se só puder conseguir outra melhor com proscrições e derramamento de sangue. Mantenha-se quieto e limite-se a formular votos de para si e para a comunidade”.
Siracusa é aqui. Que Deus nos proteja.
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