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Mookie, Sal e os filhos em “Faça a coisa certa”, de Spike Lee.
Mookie, Sal e os filhos em “Faça a coisa certa”, de Spike Lee.| Foto: Divulgação

De novo o sol vampiro a sugar-me o sangue
O assalto da noite corsária à minha
fortaleza
e um fragor de meio-dia e de gaivotas
amanhece em mim para lhes bater no rosto.
Amarrem-me. Espezinhem-me. Assassinem-me.
(Aimé Cesáire, E os cães deixaram de ladrar)

O sucesso de Ela quer tudo – tema do artigo anterior – deu a Spike Lee notoriedade suficiente para que fosse considerado um cineasta verdadeiramente promissor. No entanto, isso também aumentou a expectativa e, também, sua responsabilidade para o próximo filme, School Daze, de 1988 – que traz as estrelas, à época em ascensão, Tisha Campbell, Laurence Fishburne e Giancarlo Esposito –, e foi seu primeiro filme bancado por uma grande produtora, a Columbia. Não se saiu como esperado. O filme, que se passa numa fictícia universidade negra americana, apesar de ter um bom roteiro e um bom resultado em termos financeiros, gerou críticas menos elogiosas que o anterior e, como diz Dennis Abrams, “a maioria elogiou as performances de Lee e Fishburne, mas alguns sentiram que, diante do assunto sério, a história não deveria ter sido uma comédia musical”. Mas Lee conseguiu um feito notável em duas frentes: criou o musical mais barato já feito e foi o primeiro com um elenco negro e dirigido por um diretor negro. E a partir desse momento, Lee estava preparado para produzir aquela que seria sua maior obra-prima, o espetacular Faça a coisa certa, de 1989.

Quando vemos filmes de Woody Allen, sabemos que estamos vendo um filme tipicamente novaiorquino, com todos os elementos urbanos, estéticos e de personagens característicos de Nova York. Quando vemos um filme de Paolo Sorrentino, somos lançados diretamente ao coração da Toscana, com seus jantares fartos, seus discursos altissonantes à mesa, e aquele romantismo típico da belíssima Florença. Faça a coisa certa tem todos, absolutamente todos os elementos da cultura negra americana. Abrams resume bem:

“Os moradores incluem a Madre-Irmã (Ruby Dee), que fica sentada em sua janela, de olho na vizinhança; O ʻPrefeitoʼ (Ossie Davis), um senhor beberrão que viu muito e tem muito conhecimento para transmitir; os homens da esquina [Cornermen] – M.L. (Paul Benjamin), Coconut Sid (Frankie Faison) e Sweet Dick Willie (Robin Harris) – que sentam sob um guarda-sol numa esquina e passam o dia conversando sobre tudo e todos; o grupo de adolescentes do bairro, que passam o sábado ‘fazendo marra’; e Mister Señor Love Daddy (Samuel L. Jackson), o disc jockey local da rádio WE LOVE.”

Faça a coisa certa tem todos, absolutamente todos os elementos da cultura negra americana

Tudo isso regado a muita música boa. Da abertura, que é um show à parte de Rosie Perez dançando energicamente ao som de Fight the Power – a paulada sonora de Public Enemy –, mesclada ao saxofone frenético de Brandford Marsalis; ao gospel de Take 6, o New Jack Swing de Teddy Riley e o R&B de Keith John. Mr. Love Daddy, o DJ vivido por um jovial Samuel L. Jackson, vai disparando petardos musicais de sua rádio, enquanto espia tudo o que acontece no bairro através da janela de vidro de seu estúdio. A fotografia magistral de Ernest Dickerson – diretor do clássico Juice, com 2Pac, e que colaborou na fotografia de outros cinco filmes de Lee, incluindo Malcolm X – captou de maneira precisa o dia de verão escaldante em Bedford-Stuyvesant, bairro do Brooklyn, onde jovens abrem o hidrante ou mergulham a cabeça em bacias de água com gelo para se refrescar.

Mookie, personagem de Spike Lee em interpretação estupenda, é um jovem querido por todos no bairro, que trabalha na pizzaria de Salvatore “Sal” Frangione (Danny Aiello), um italiano que, com suas pizzas, alimenta aquela juventude há 25 anos. Seus filhos, o sossegado Vito (Richard Edson) e o encrenqueiro e racista Pino (o sempre excelente John Turturro), são os únicos brancos das redondezas. Sal é querido pela maior parte dos vizinhos e orgulha-se disso. Numa conversa com Pino, que deseja ir embora, pois sente que está no “Planeta dos Macacos”, diz: “Nunca tive problemas com essa gente. Sento-me a esta janela, vejo as crianças crescendo e os velhos ficarem mais velhos. Claro, alguns não gostam de nós, mas a maioria gosta. Mas poxa, Pino! Cresceram comendo minha comida. Minha comida; e orgulho-me disso. Pode até achar engraçado, mas me orgulho muito disso. Filho, estou querendo dizer que a Famosa Pizzaria do Sal veio para ficar. Sinto muito. Sou teu pai e te amo. Sinto, mas é assim”. Mookie, que vive se estranhando com Pino, gosta de trabalhar lá e, de certo modo, se sente grato pelo emprego. E tudo seria ótimo se não fosse por Buggin Out, uma espécie de caricatura de militante radical que inicia a contenda que acabará em tragédia.

Buggin Out, interpretado pelo brilhante Giancarlo Esposito (o temível Gustavo Fring de Breaking Bad), então com 30 anos, é um daqueles pós-jovens (um adulto que insiste em não amadurecer) negros influenciados pelos discursos mais fervorosos de Malcolm X em sua fase Nação do Islã, que despreza os brancos, diz aos outros negros, de punhos cerrados, coisas como “mantenha-se negro”, e irrita-se profunda, mas comicamente, com um rapaz branco que pisa, sem querer, em seu Air Jordan branquinho. Curiosamente, um de seus amigos é interpretado por Martin Lawrence, que estreava no cinema.

O filme retrata o turbulento melting pot que é a América. Como escrevi em outro artigo no qual cito brevemente Faça a coisa certa, “Lee demonstra nesse filme, que se passa num único dia, no Brooklyn, em meio a negros, italianos, latinos e coreanos, toda a complexidade das relações raciais na América – país de imigrantes, é preciso dizer. Todos os discursos são confrontados, com doses finas de humor e crítica. E tudo se encaminha para um final trágico extremamente reflexivo. Não há proselitismo gratuito, e até os engajamentos radicais são questionados”. Negros xingam italianos, que xingam latinos, que xingam coreanos, que xingam judeus. Não há mocinhos e bandidos e todos são, ao mesmo tempo, inocentes e culpados. E, de certo modo, o filme reflete a tensão que há entre o ativismo de Malcolm X e o de Martin Luther King, retratada textualmente no final, com uma citação de cada um dos dois maiores líderes negros americanos. Numa cena emblemática dentre várias, Lee explora de maneira genial a complexidade das relações no bairro. Os três homens da esquina estão conversando suas típicas bobagens, quando um deles olha para o outro lado da rua e inicia o que deveria ser um assunto sério:

M.L.: Olha os malditos coreanos do outro lado. Abriram o próprio negócio nem um ano depois de descerem do barco.
Coconut Sid: É verdade, cara. Faz quase um ano.
M.L. Um ano maldito, de um barco fodido e já têm negócio próprio no nosso bairro. Um bom negócio, ocupando um prédio que andava fechado por anos e anos. E vivo aqui há muito tempo.
Sweet Dick Willie: Ele tem razão. Mora aqui faz tempo.
M.L.: Mas, eu juro. Não consigo entender. Ou os malditos coreanos são gênios ou nós negros aqui somos todos burros.
Sweet Dick Willie: Vai se foder.
Coconut Sid: Só pode ser porque somos negros. Não tem outra explicação. Eu tô ligado! Não estão sempre botando os negros pra baixo?
Sweet Dick Willie: Seu idiotas, parem com isso. Cansei da mesma desculpa.
M.L.: Te digo, eu juro. Só ficarei feliz quando abrirmos nosso próprio negócio aqui no bairro. Juro que serei o primeiro da fila a gastar meu dinheiro. Aqui, com vocês.

E o arremate de Sweet Dick Willie, o mais bonachão, é desconcertante:

“Seus imbecis, sempre falando dessa mesma porcaria. ‘Vou fazer isso. Vou fazer aquilo’. Não farão nada a não ser sentar a bunda nessa esquina. M.L., quando vai abrir seu negócio? Viu? Como eu pensei. Sei o que eu vou fazer! Vou dar mais grana para aqueles coreanos. Saiam daí. Tá na hora da cervejinha. Nenhum bobo me diz o que fazer. Deviam ter vergonha. Vocês também vieram de barco. Me deixem. Ei, Kung Fu, dá mais uma cerveja, aí!”

Negros xingam italianos, que xingam latinos, que xingam coreanos, que xingam judeus. Não há mocinhos e bandidos e todos são, ao mesmo tempo, inocentes e culpados

E mais à frente na sequência, Mookie coloca o racismo de Pino em xeque: “Qual seu jogador de basquete preferido?” “Magic Johnson”, ele responde. Mookie continua: “E seu ator favorito?” “Eddie Murphy”, Pino diz, um pouco sem jeito. “E seu cantor de rock?” Pino titubeia e ele mesmo responde: “Prince?”. Pino diz que é Bruce Springsteen. Aí Mookie arremata: “Você vive falando que preto isso, preto aquilo, e seus favoritos são pretos”. Pino tenta consertar: “É diferente. Magic, Eddie e Prince não são pretos. Digo, não são negros. Deixa eu explicar: Não são negros de verdade. São, mas não são muito. São mais que negros”. Mas Mookie vai na veia: “No fundo, você queria ser negro”. A discussão continua, mas, mais uma vez, Spike Lee demonstra toda a contradição do racismo.

A coisa começa a complicar quando Buggin Out sai à procura de aliados para promover um boicote à pizzaria do Sal. Todos rejeitam, dizem que ele está maluco, que todos gostam das pizzas do Sal e rechaçam o seu plano. Mas ele encontra um parceiro em Radio Raheem (Bill Nunn), um jovem que anda para cima e para baixo com um rádio portátil enorme, ouvindo Fight the Power no último volume. Eles entram na pizzaria, iniciam uma violenta discussão com Sal, Radio Raheem se recusa a abaixar o volume de seu rádio, ao que Sal o destrói com um taco de beisebol. Começa uma briga generalizada, a polícia chega e assassina Radio Raheem, asfixiado, na frente de todos. A loja do Sal é completamente destruída e Mookie, num acesso de raiva, faz a coisa certa (?) e joga uma lata de lixo na vidraça do estabelecimento, que, pelas mãos de Smiley (Roger Guenveur Smith) – um rapaz gago que anda com reproduções da histórica foto do aperto de mão entre Malcolm e Martin –, começa a arder em chamas. A violência mimética desencadeada só termina quando não há mais nada para destruir. O grito desesperado da Madre-Irmã, amparada pelo Prefeito, diz muito sobre a violência que acabamos por produzir contra nós mesmos. Vale lembrar que Ossie Davis e Ruby Dee foram dois lendários ativistas pelos Direitos Civis, amigos de Malcolm X e Martin Luther King. Ossie Davis, inclusive, discursou no funeral dos dois.

Michael Silberstein, em The Philosophy of Spike Lee, lembrando o dilema levantado pelo Founding Father Thomas Jefferson, ao dizer “Não há dúvida no livro do destino de que essas pessoas devem ser livres. Não é menos certo que as duas raças, igualmente livres, não possam viver sob o mesmo governo”, afirma que “Faça a Coisa Certa é, no microcosmo, uma representação desse problema profundo [a convivência harmoniosa entre negros e brancos na América] e um lembrete de que o ele não desapareceu, apenas mudou de forma. Este é um desafio não apenas para o pluralismo jeffersoniano, derivado de pensadores brancos europeus, mas também para a unidade da comunidade afroamericana, representada por ideologias internas concorrentes sobre como responder ao racismo na América. Portanto, determinar a coisa certa a fazer é uma questão urgente para brancos e negros.”

O filme, absolutamente aclamado pelo público e pela crítica, também carregou controvérsias. Muitos consideraram o final como uma apologia ao ódio racial. Abrams levanta as questões em seu livro: “Lee respondeu [à crítica do jornalista Joe Klein, da New York Magazine] dizendo que ele fez Faça a coisa certa para desencadear um diálogo, não um tumulto. ʻMookie fez o que fez porque estava com raivaʼ, disse Lee. ʻEle viu por si mesmo como o sistema destrói os negros. O que ele deveria fazer: ficar lá e liderar todo mundo em um coro de We Are the World?ʼ Ao contrário do que Klein afirmou, Lee acreditava que o filme faria os novaiorquinos verem que o atual prefeito, Ed Koch, havia feito pouco para promover a harmonia racial durante seus 12 anos como prefeito e que eles votariam em Dinkins para o cargo”.

Faça a coisa certa é, indubitavelmente, uma obra-prima de Spike Lee, que consegue levantar questões muito complexas sem maniqueísmos

O filme também foi esnobado no Oscar, sendo indicado somente para Roteiro Original e Ator Coadjuvante (Danny Aiello). Conduzindo Miss Daisy venceu o prêmio de Melhor Filme naquele ano, o que irritou Lee, que disse: “Acho que muitos americanos brancos ficam mais à vontade com um homem negro que é realmente um cidadão de segunda classe [...] Seu nível de conforto é maior com [Morgan] dirigindo para Miss Daisy do que com Mookie jogando uma lata de lixo na Pizzaria do Sal”.

Entretanto, Faça a coisa certa é, indubitavelmente, uma obra-prima de Spike Lee, que consegue levantar questões muito complexas sem maniqueísmos, com a dose de antagonismo necessária para gerar uma reflexão importantíssima sobre o racismo, sem apontar o dedo a ninguém especificamente, ou apontando o dedo para todos, pois trata-se, realmente, de um problema de todos nós. Uma pena que o Spike Lee dos anos 1990 tenha ficado nos anos 1990. Mas isso é assunto para outro artigo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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