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As reuniões de cúpula do Mercosul e dos BRICS, ocorridas de forma quase concomitante, foram assunto de destaque nos últimos dias. O fato de o Brasil assumir, a partir de agora, a presidência rotativa do Mercosul e, ao mesmo tempo, liderar os BRICS convida à reflexão sobre o papel geopolítico do país no cenário internacional tão conturbado dos dias de hoje.
Segundo uma definição simples, geopolítica é a área do conhecimento que estuda a aplicação do poder estatal a determinado espaço geográfico. Quando se fala em Mercosul, a definição geográfica fica bastante clara: o bloco reúne um grupo de países da América do Sul, todos interessados em, de forma sinérgica, ampliar, pela ação conjunta e concertada, seus insumos de poder para negociar com países ou blocos comerciais de outras partes do mundo a partir de uma posição mais forte e, em consequência, mais vantajosa.
Em relação aos BRICS, entretanto, a análise geopolítica se torna muito mais complexa. A dificuldade começa desde a criação do bloco, que não nasceu como um instrumento da geopolítica, mas como uma sacada inteligente de um relatório econômico de 2001 do banco Goldman Sachs, ao reunir em um acrônimo as letras iniciais de quatro potências emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China. A ideia de reunir países tão diferentes e analisá-los de forma conjunta fazia sentido naquele momento: o potencial apontado pelo relatório se confirmou, pois, entre 2003 e 2007, o crescimento desses quatro países representou 65% da expansão do PIB global.
Em 2006, o conceito que estava restrito aos meios acadêmicos e econômicos começou a ganhar expressão política. Os chanceleres dos quatro países se reuniram às margens da conferência da ONU e iniciaram uma aproximação que redundou, em 2009 — ano em que o mundo ainda lidava com as consequências da grave crise econômica de 2008 — na criação do bloco, em uma reunião dos quatro presidentes, ocorrida na Rússia.
Em 2011, a África do Sul uniu-se ao grupo, e acrescentou-se o “S” ao nome original. A incorporação da potência africana, entretanto, surpreendeu os criadores do conceito, uma vez que o país não possuía o mesmo potencial econômico do grupo original. Apesar disso, fazia todo o sentido do ponto de vista geopolítico, pois o país abria as portas da África ao grupo, aumentando sua representatividade como defensor dos interesses do “Sul Global” junto às instituições multilaterais.
Foi neste mesmo ano de 2011 que o governo Obama lançou sua política denominada “Rebalance to Asia”, também conhecida como pivô para a Ásia, uma tentativa de reação americana às mudanças no equilíbrio de poder global, com a Ásia passando a ter muito maior relevância.
Em 2014, a Rússia, por meio de uma série de ações de guerra híbrida, tomou a península da Crimeia da Ucrânia e fomentou o início da guerra civil no leste daquele país.
Em dezembro de 2017, no primeiro governo Trump, a Estratégia Nacional de Segurança dos EUA passou a nominar claramente os quatro principais adversários de Washington: Rússia e China, tratadas como “potências revisionistas” que tinham por objetivo moldar um mundo contrário aos valores e interesses americanos, e Irã e Coreia do Norte, considerados “regimes párias” que atuariam à margem das leis internacionais, também contra os interesses dos EUA.
Em 2024 e 2025, mais cinco países do “Sul Global” foram aceitos como membros plenos dos BRICS: Irã, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Indonésia.
Chegamos ao dia de hoje. Decorridos menos de oito anos da edição do documento de segurança norte-americano, vejamos a situação de três membros dos BRICS: a Rússia invadiu a Ucrânia e trava uma guerra de alta intensidade há mais de três anos no coração da Europa. O Irã acaba de ter suas instalações nucleares atacadas pelos EUA, em meio a uma guerra com Israel. E a China, cada vez mais assertiva na defesa de seus interesses geopolíticos, em reação à política do presidente Trump, trava uma guerra tarifária com os EUA.
Este contexto evidentemente complica — e muito — a posição brasileira nos BRICS. Se, por um lado, é inegavelmente vantajoso integrar um grupo que reúne 48,5% da população mundial, 36% do território do planeta, 40% do PIB global e 21,6% do comércio internacional — o que permite ao Brasil ter uma voz mais ativa e influente nos assuntos globais — por outro, o caráter geopolítico de antagonismo com os EUA e seus aliados ocidentais não interessa ao país.
É neste contexto de enorme complexidade, no qual as pressões serão crescentes e virão de todos os lados, que o Brasil precisa atuar, sempre na defesa dos seus próprios interesses
Afinal, se por um lado o Brasil tem na China seu maior e mais importante parceiro comercial, por outro, os EUA são também um parceiro relevantíssimo. Além disso, é necessário lembrar, em um texto que se propõe a analisar a questão do ponto de vista da geopolítica, que o Brasil é o único país a oeste do meridiano de Greenwich, ou seja, localizado no Ocidente geográfico, a fazer parte dos BRICS. Isso é particularmente significativo, pois confere ao bloco uma presença simbólica e prática no Hemisfério Ocidental, tradicionalmente sob a influência estratégica dos Estados Unidos e da Europa, e torna a posição brasileira ainda mais singular e delicada no equilíbrio global de poder.
O Brasil é o maior país sul-americano em termos territoriais e populacionais, é a superpotência global em produção de alimentos, possui a mais rica biodiversidade do planeta e enormes reservas minerais. Possui ainda a maior economia, o mais desenvolvido complexo industrial e as Forças Armadas mais poderosas do subcontinente. Os EUA sabem que, para onde pender o Brasil, tenderá a pender a América do Sul. Do ponto de vista geopolítico, é uma temeridade, para a estratégia norte-americana, ver a influência chinesa sobre o Brasil crescer.
É neste contexto de enorme complexidade, no qual as pressões serão crescentes e virão de todos os lados, que o Brasil precisa atuar, sempre na defesa dos seus próprios interesses. Trata-se de um campo minado, que exige uma estratégia claramente definida e muita determinação para segui-la. Entretanto, é necessário que isso seja feito com habilidade e inteligência.
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