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Paulo Filho

Paulo Filho

"Nações Unidas"

ONU 80 anos: sucessos, fracassos e a urgência da refundação

A ONU falha em garantir a paz mundial. Seu sistema está esgotado e precisa ser refundado antes que seja tarde. (Foto: Patrick Gruban/Assembleia Geral da ONU/Wikimedia Commons)

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“Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade [...] concordamos com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecemos, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.”

Esse trecho do preâmbulo da Carta da ONU, assinada por 51 países – inclusive o Brasil – em 26 de junho de 1945, em São Francisco, nos EUA, ao término da 2ª Guerra Mundial, traz com clareza o objetivo central da organização: livrar as gerações vindouras do flagelo da guerra.

Passados 80 anos daquele momento fundador, e ao término de uma Assembleia Geral que evidenciou o esgotamento da ordem internacional sobre a qual se estabeleceram os pressupostos do sistema ONU, é importante fazer um balanço de sua atuação nessas oito décadas, bem como refletir sobre o destino da organização.

Por um lado, é necessário reconhecer que, se aqueles que se sentaram à mesa para assinar a Carta da ONU em 1945 tinham sido eles mesmos testemunhas de duas grandes guerras mundiais, que causaram dezenas de milhões de mortes, nenhum dos líderes mundiais que discursou na semana passada na 80ª Assembleia Geral da ONU teve que lidar com uma catástrofe dessas proporções. Nesse sentido, é possível dizer que “os povos das Nações Unidas” alcançaram, pelo menos, esse sucesso: o de evitar uma 3ª Guerra Mundial.

Por outro lado, 2024 foi o ano com o maior número de conflitos desde 1945, ou seja, desde a criação da ONU. Este é um indício claro de que, embora a 3ª Guerra Mundial tenha, até aqui, sido evitada, a comunidade internacional reunida sob a ONU – hoje um conjunto formado por 193 países – está muito longe de conseguir “preservar as nações vindouras do flagelo da guerra”.

A principal razão para esse fracasso está no esgotamento da ordem internacional do pós-guerra, sobre a qual a ONU foi concebida. O exemplo mais claro disso são os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (CS), que, com seu poder de veto, têm paralisado aquele que é o principal órgão decisório da ONU.

EUA, Rússia, China, Reino Unido e França têm sido incapazes de conduzir qualquer decisão no CS, mesmo em temas aparentemente consensuais, como o Haiti – país assolado por uma gravíssima crise há anos – e sobre o qual não existem maiores condicionantes geopolíticas que dificultem uma convergência de ideias.

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Poder, interesses e valores são os principais fatores que guiam os países em suas relações internacionais

A balança de poder global que vigorava em 1945 mudou nos últimos anos. A China se impôs como uma grande potência econômica, tecnológica e militar, desafiando a, até então, potência hegemônica: os EUA, que lideraram a ONU e suas instituições no período unipolar das últimas décadas.

A ascensão chinesa naturalmente abriu espaço para sua atuação também no sistema ONU, muitas vezes liderando posições divergentes das dos EUA. Com isso, os americanos se viram desafiados, perdendo espaço e, consequentemente, a capacidade de definir os rumos das decisões, levando os EUA à percepção de que a ONU já não contribuía para seus objetivos estratégicos, especialmente durante a administração Trump.

A reação veio com a decisão de abandonar diversos organismos, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Conselho de Direitos Humanos e o Acordo de Paris sobre o Clima. Essa postura foi reforçada pela interrupção, pelos norte-americanos, dos pagamentos devidos à ONU, que representam cerca de 22% do orçamento da organização.

Perseguir seus próprios interesses é inerente à atuação internacional dos Estados, sendo absolutamente legítimo que isso aconteça. Entretanto, essa perseguição deve ocorrer com base em acordos mútuos previstos nos tratados, regimes e leis internacionais, de forma a evitar conflitos. Soberanias nacionais, por exemplo, devem ser absolutamente respeitadas. O interesse russo não pode desconsiderar as fronteiras ucranianas.

O interesse americano não pode desconsiderar a soberania panamenha sobre o Canal do Panamá. O interesse chinês no Mar do Sul da China não pode desconsiderar a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS).

Quando grandes potências perseguem seus interesses ao arrepio das normas internacionais, esse comportamento serve de exemplo e se espalha por todo o sistema internacional, degradando o multilateralismo que tem a ONU como principal referência.

Por fim, é preciso considerar os valores universais que inspiraram a criação da organização: igualdade de direitos entre os países, autodeterminação, respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos; níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social. Ignorar esses valores significa sabotar a solução pacífica das controvérsias e alimentar ainda mais os conflitos que assolam o mundo.

Refundar a ONU, para que ela continue fiel aos seus propósitos, é urgente. Para isso, é importante que o Brasil erga sua voz no cenário internacional, lembrando a todos os valores que motivaram a humanidade – traumatizada à época pelas dezenas de milhões de mortes das duas grandes guerras – a se reunir na busca da paz.

A alternativa será a refundação do organismo sobre os escombros catastróficos de um novo conflito global.

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