Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Paulo Filho

Paulo Filho

Estratégia Nacional de Segurança

Trump reinventa a doutrina Monroe: o que isso significa ao Brasil?

COP 30 Belém Trump EUA
A nova estratégia de Trump recentraliza o hemisfério e promete pressões duras ao Brasil — num cenário em que seguimos sem estratégia. (Foto: Daniel Torok/White House)

Ouça este conteúdo

O governo Trump divulgou na semana passada sua nova Estratégia Nacional de Segurança (ENS). O documento, como era esperado, assinala uma mudança completa das prioridades estratégicas dos Estados Unidos, adequando-as à visão de mundo da atual administração, segundo a qual o povo americano, seu território, sua economia e seu modo de vida estão sob ataque.

Por essa leitura, o foco da estratégia deve recair principalmente sobre o próprio território dos EUA e sobre o Hemisfério Ocidental, e não mais sobre outras regiões do planeta cujos problemas não afetariam diretamente os cidadãos norte-americanos. Para compreender melhor o que isso significa, é importante fazer uma contextualização.

As ENS são documentos centrais da política externa e de defesa dos EUA, pois esclarecem como Washington percebe o ambiente internacional, quais são seus interesses vitais e de que maneira pretende empregar os instrumentos de poder nacional — diplomático, informacional, militar, econômico e tecnológico — para atingir seus objetivos estratégicos. Assim, a ENS faz um diagnóstico do ambiente, identifica ameaças, desafios e oportunidades, estabelece prioridades e orienta políticas públicas. Além disso, serve de base para documentos setoriais, como a Estratégia Nacional de Defesa.

O documento, tal como o conhecemos hoje, passou a existir por exigência legal da Lei Goldwater-Nichols, de 1986, que reorganizou o Departamento de Defesa dos EUA. Desde então, cada ENS refletiu a visão de mundo do presidente de turno e a forma como cada governo entendia a missão de garantir a segurança e a liderança norte-americanas no cenário internacional.

Grosso modo, pode-se dizer que as ENS elaboradas pelos presidentes entre 1987 e 2001 — Reagan, George H. W. Bush e Clinton — fizeram a transição da estratégia de contenção da União Soviética para uma estratégia de consolidação da primazia americana como superpotência do pós-Guerra Fria.

A prioridade passou a ser moldar a ordem internacional à imagem e semelhança dos EUA, expandindo democracias liberais de mercado, apoiando “transições democráticas” em regimes iliberais e apostando na globalização. Foram estratégias relativamente coerentes, com continuidade mesmo diante de mudanças de governo.

Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, entretanto, provocaram uma grande mudança na visão estratégica norte-americana. A ENS de 2002 passou a ter como foco o combate ao terrorismo jihadista transnacional.

A guerra preventiva ganhou protagonismo, com o objetivo de eliminar ameaças antes que se materializassem, e caracterizou o período em que os EUA se envolveram na caçada a Osama bin Laden e nas guerras no Iraque e no Afeganistão.

A ascensão da China, a partir da segunda década do século XXI, gerou uma nova mudança. Na ENS de 2015, do governo Obama, surge o termo “rebalance to Asia” — traduzido comumente como “Pivô para a Ásia” — reconhecendo o peso crescente da China e da região do Indo-Pacífico.

Já na ENS de 2017, no primeiro governo Trump, China, Rússia, Irã e Coreia do Norte são nomeadas abertamente como potências adversárias. O documento marca o retorno explícito da competição entre grandes potências, e a guerra ao terror deixa de ser a prioridade estratégica. A ENS do governo Biden manteve essa lógica.

VEJA TAMBÉM:

A virada estratégica: o “Corolário Trump” e o retorno do Hemisfério Ocidental

A ENS divulgada na semana passada rompe com essa continuidade e estabelece um novo foco: a segurança das fronteiras dos EUA, com o combate ao tráfico de drogas e à imigração ilegal assumindo prioridade máxima. Para isso, o Hemisfério Ocidental passa a ocupar, pela primeira vez desde 1987, o lugar central na estratégia norte-americana. Nesse contexto, o documento afirma estar criando um “Corolário Trump” à Doutrina Monroe.

A Doutrina Monroe, de 1823, estabelecia a ideia de uma “América para os Americanos” e tinha como objetivo manter as potências europeias fora do continente. Em 1904, o presidente Theodore Roosevelt introduziu o “Corolário Roosevelt”, de caráter intervencionista, que autorizava os EUA a intervir em países das Américas para “estabilizá-los”.

Inspirando-se nessa lógica, a nova ENS cria o “Corolário Trump”, baseado em três pilares centrais:

  • (1) rejeição da presença militar, da influência estratégica ou do controle de infraestrutura crítica no hemisfério por qualquer potência extra-hemisférica;
  • (2) direito de intervir diretamente — inclusive com uso da força — para impedir ameaças “transnacionais” originadas no hemisfério, como tráfico de drogas, redes de imigração ilegal e terrorismo;
  • (3) deslocamento de cadeias de suprimento críticas, como minerais estratégicos e energia, para o Hemisfério Ocidental sob liderança americana.

Simultaneamente, embora o Hemisfério Ocidental assuma prioridade máxima, a Ásia mantém importância estratégica, pois o documento considera fundamental a manutenção de um Indo-Pacífico “livre e aberto”, com liberdade de navegação e cadeias de suprimento seguras.

A Europa, por outro lado — e aqui está uma das mudanças mais profundas — perde centralidade. Em tom marcadamente ideológico, o documento afirma que o continente vive uma “erosão de sua identidade”, causada por “censura à liberdade de expressão, supressão da oposição política, colapso das taxas de natalidade e perda de identidades nacionais e de autoconfiança”. Os governos europeus são responsabilizados pela continuidade da guerra na Ucrânia, supostamente em desacordo com o desejo da maioria por paz.

E, finalmente, os EUA afirmam que a Europa deve ser cada vez mais capaz de se defender sozinha. Esse posicionamento despertou forte reação entre os aliados europeus, que passam, pela primeira vez desde a criação da OTAN, a temer que os Estados Unidos não sejam mais um parceiro absolutamente confiável e disponível diante de um eventual conflito com a Rússia.

A nova Estratégia Nacional de Segurança representa uma ruptura significativa no pensamento estratégico dos EUA, com impactos em todo o mundo — especialmente na América Latina e no Brasil

O “Corolário Trump” à Doutrina Monroe nos afeta diretamente. Ele explicita, de maneira literal, que os EUA utilizarão — como já vêm fazendo com a imposição de tarifas comerciais — todas as ferramentas de seu poder nacional para alcançar os objetivos que considerarem favoráveis aos seus interesses.

Podemos, portanto, esperar pressões econômicas, comerciais, políticas e informacionais sobre várias decisões e iniciativas privadas e de governo, tanto na esfera federal quanto nos níveis estaduais e municipais, que envolvam terceiros países extra-hemisféricos, em especial a China.

As ações brasileiras para fazer frente à nova estratégia dos EUA deveriam ser concertadas por uma grande estratégia própria, que considerasse a realidade do mundo atual e buscasse defender da melhor forma os interesses nacionais. Temos essa estratégia?

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.