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Há exatamente três anos, em um dia 24 de fevereiro como hoje, tropas russas invadiam a Ucrânia. O que muitos consideravam impossível acontecia: uma guerra de alta intensidade estava de volta ao coração da Europa.
Os prognósticos eram extremamente desfavoráveis à Ucrânia. Afinal, o país era invadido pela segunda maior potência militar do mundo, e a queda de Kiev parecia iminente.
O início da guerra deixou os europeus perplexos e muito preocupados. No momento em que a Ucrânia era invadida, o general Alfons Mais, comandante do Exército alemão, reclamava da falta de meios à disposição de suas tropas: “No meu 41º ano de serviço em tempos de paz, não teria pensado que teria de passar por uma guerra [...] e o Bundeswehr, o Exército que tenho a honra de comandar, está mais ou menos de mãos vazias. As opções que podemos oferecer ao governo em apoio à Aliança são extremamente limitadas.”
Contrariando muitas previsões, hoje a guerra entra em seu quarto ano com a Ucrânia ainda oferecendo resistência ao invasor, embora enfrente uma situação muito difícil, marcada pela escassez de soldados em razão das inúmeras baixas, das dificuldades de recrutamento e de um alto índice de deserções.
O país também perdeu o controle de quase 20% de seu território internacionalmente reconhecido e viu o apoio norte-americano – que fornece 40% de todo o armamento usado pelos ucranianos – ser interrompido após a posse do presidente Trump.
A Rússia, por sua vez, embora controle quase um quinto do território ucraniano, não cumpriu nenhum dos objetivos a que se propôs no início do conflito. No nível estratégico, viu a OTAN se aproximar ainda mais de suas fronteiras, especialmente com a adesão da Finlândia, que acrescentou 1,2 mil quilômetros de contato direto entre a Aliança Atlântica e a própria Rússia.
Apesar de ter anexado formalmente as províncias ucranianas de Donetsk, Kherson, Luhansk e Zaporizhzhia, a Rússia não controla completamente nenhum desses territórios e ainda enfrenta a ocupação de uma pequena parte de sua própria região de Kursk por forças ucranianas.
A guerra impulsionou, de modo significativo, a opinião pública europeia a apoiar que seus governantes investissem mais em capacidades de defesa, um desdobramento claramente contrário aos interesses russos
O exemplo mais paradigmático é o da Alemanha, do general Alfons Mais, citado no início deste texto. Sob a liderança do chanceler Olaf Scholz, o país implementou o que ele chamou de “ponto de virada”, ou Zeitenwende, na política de segurança alemã.
O orçamento de defesa do país cresceu impressionantes 23,2% de 2023 para 2024, o que significa que o país passou a ter o 4º maior orçamento de defesa do mundo. As forças alemãs estão sendo rapidamente modernizadas e reorganizadas.
A maioria dos países europeus acompanhou o movimento alemão, redundando em um aumento real de 11,7% nos investimentos europeus de defesa, em 2024.
As negociações de um acordo de paz para a Ucrânia estão no centro das discussões hoje. O presidente Trump, que na campanha eleitoral dizia que encerraria a guerra em 24 horas, se vê pressionado a cumprir sua promessa.
Para isso, restabeleceu conversas com a Rússia do presidente Putin, retirando aquele país de um isolamento que os EUA e seus aliados ocidentais vinham impondo desde o início de 2022, mas vem negociando à revelia da Europa e, pior ainda, da própria Ucrânia.
No bojo dessas negociações, Trump exigiu que Washington controlasse 50% dos rendimentos oriundos da exploração de recursos naturais ucranianos — como grafite, lítio e urânio — como pagamento por todo o apoio financeiro dado pelos EUA à Ucrânia nos últimos anos.
A proposta, até aqui rechaçada por Zelensky, não inclui garantias de segurança e foi vista por diplomatas europeus como “colonialismo”, aprofundando o desgaste entre Kiev e Washington.
Além disso, o lado americano já disse, de antemão, que a devolução dos territórios anexados pela Rússia à Ucrânia era um objetivo irrealista, que os EUA não enviariam soldados para compor uma eventual tropa de manutenção da paz na Ucrânia pós-conflito e que não havia possibilidade de a Ucrânia ser aceita na OTAN.
O próprio Trump ainda ecoou a retórica falsa de que Zelensky seria um presidente ilegítimo — um ditador, em suas palavras — por não promover eleições presidenciais no prazo previsto.
Esse disparate, pelo mesmo critério, colocaria Winston Churchill no rol dos ditadores, uma vez que o Primeiro-ministro britânico permaneceu no poder por muito mais tempo do que o previsto, dada a impossibilidade de se promover eleições no Reino Unido em meio à Segunda Guerra Mundial.
A postura de Trump, evidentemente alinhada antecipadamente com os interesses russos, enfraquece a posição dos EUA como mediador. Entretanto, a realidade se impõe: os Estados Unidos, como maior potência do mundo e, até 20 de janeiro, o maior apoiador individual da Ucrânia, exercerão um papel determinante nas negociações de paz.
Os europeus, que em conjunto contribuíram com mais recursos financeiros para a Ucrânia do que os EUA, tentam reagir ao protagonismo americano que os alienou das discussões de paz.
O presidente francês Emmanuel Macron assumiu a liderança, convocando, na semana passada, os principais líderes do continente para uma reunião de emergência. Os europeus reiteraram seu apoio à Ucrânia, dizendo-se dispostos a continuar a ajudar o país enquanto for necessário. França e Reino Unido se mostraram dispostos a enviar tropas à Ucrânia para dar garantias ao país após um eventual cessar-fogo.
Em meio a tudo isso, a população ucraniana, que em um primeiro momento se sentiu esperançosa de que a guerra finalmente terminasse, agora convive com um sentimento de raiva e frustração
É evidente que os ucranianos são os que mais desejam retomar a vida normal: querem deixar para trás a rotina de bombardeios, destruição e mortes. Mas sabem, por experiência própria, que um processo de paz mal conduzido só leva a conflitos ainda piores. Foi o que ocorreu após a invasão da Crimeia e da região de Donbas, no leste da Ucrânia, pela Rússia em 2014, cujo processo de paz mal sucedido acabou resultando na invasão russa de 2022.
Em suma, depois de três anos de conflito, a busca por um desfecho na Ucrânia permanece marcada por incertezas: enquanto a Europa tenta reafirmar sua influência e garantir que os interesses ucranianos – e em última análise, europeus - não sejam subjugados, os Estados Unidos, sob a liderança de Trump, conduzem negociações à revelia, já indicando concessões que podem comprometer a soberania do país.
Em meio a esse jogo de poder, a população civil permanece refém da guerra, temendo que um processo de paz apressado ou mal conduzido apenas adie uma nova escalada.




