Rodrigo Constantino, colega de Gazeta do Povo, tem mais convergências do que divergências comigo quando o assunto é economia. O rótulo que preferimos para descrever nossa visão política é o mesmo: somos liberais. Isto não significa que concordamos em tudo. O liberalismo é repleto de tribos e divisões internas. Nas grandes questões históricas, os liberais costumam se dividir.
Um episódio famoso, que ilustra essas cisões, ocorreu numa reunião da Sociedade Mont Pèlerin: enquanto conversava com Milton Friedman e F. A. Hayek, o economista Ludwig von Mises levantou-se revoltado e gritou: “vocês são um bando de socialistas!”. Evidentemente, Friedman e Hayek nunca foram socialistas. Nos olhos de um camarada mais radical, como Mises, este era o retrato que aparecia.
Constantino trata como falsos liberais aqueles que defendem uma forte expansão de gastos públicos para combater a pandemia. “Eu era do tempo em que liberal condenava o New Deal do Roosevelt”, tuítou, referindo-se ao plano de Franklin Delano Roosevelt para combater a crise de 1929.
Milton Friedman – o economista liberal mais influente da história dos EUA, profundo estudioso da Grande Depressão americana – não se encaixa na definição de liberalismo proposta por Rodrigo Constantino. É verdade que Friedman discordava de aspectos regulatórios do New Deal, como controles de preços e salários. Foram políticas desastrosas que atrapalharam o crescimento da economia americana por décadas. Mas o Chicago Boss também apoiava outra parte do New Deal, voltada a aliviar o desemprego e promover a recuperação da economia.
“Aliviar a situação dos desempregados, prover emprego a eles, estimular o crescimento da economia e uma política monetária expansionista... Estas foram as partes do New Deal que eu apoiei.”, disse Friedman em entrevista à PBS.
O entrevistador, sabendo que dialogava com o economista liberal que identificou as principais falhas da teoria keynesiana, perguntou por que Friedman apoiava aquelas políticas. E a resposta nos ensina muito sobre o que fazer nos dias atuais:
“Porque foi uma circunstância excepcional. Nós estávamos numa situação muito difícil, sem precedentes na história americana. Milhões de pessoas ficaram sem trabalho. Algo precisava ser feito; era intolerável. Naquele período, ao contrário do que costuma acontecer, o curto prazo era dominante [em relação ao longo prazo].”
Neste momento sensível da história, é importante aprender com as lições de Milton Friedman sobre o que ocorreu 90 anos atrás. Afinal, estamos passando por outra circunstância excepcional, sem precedentes na história. Com a pandemia, milhões ficaram sem trabalho. Algo precisa ser feito; é intolerável. Nas atuais circunstâncias, ao contrário do que costuma acontecer, o curto prazo é dominante.
A ação estatal faz sentido neste momento, inclusive numa perspectiva liberal
Numa perspectiva liberal, a ação estatal é ainda mais justificável agora, durante o combate à pandemia. A produção industrial americana caiu pela metade nos primeiros três anos da Grande Depressão. Em 2020, a produção industrial deve desabar de um trimestre para o outro, repentinamente.
A Grande Depressão americana não foi intencional. Agora, por outro lado, o Estado está causando uma recessão propositalmente. A esmagadora maioria dos economistas e epidemiologistas acredita que o melhor a fazer é aguentar uma crise para evitar milhões de mortes.
Não entro no debate epidemiológico, pois não é a minha área. Não sei por quanto tempo a economia precisa parar ou qual a melhor forma de salvar vidas neste momento. Minha posição aqui é simples e objetiva: ao contrário de Constantino, acredito que uma expansão dos gastos públicos é necessária, inclusive para quem – como nós – acredita que a política econômica deve se guiar por princípios liberais.
Há dois motivos principais que justificam a minha posição.
Motivo nº 1: numa pandemia, déficits maiores podem aumentar o investimento privado
Primeiramente, gastos públicos podem evitar a paralisação da economia. Em muitos casos, aumentar o déficit público prejudica o investimento privado, num fenômeno conhecido pelos economistas como “crowding-out”. No combate à pandemia, o oposto acontece.
A Coreia do Sul, por exemplo, está gastando massivamente em testes de covid-19 para evitar que a economia do país pare. Assim, é possível monitorar infectados e manter o comércio aberto, produzindo riqueza. A despesa estatal impede que o vírus intervenha no setor privado. A saúde pública pode ajudar na operação do capitalismo.
O mesmo raciocínio vale para a produção de respiradores, expansão dos leitos de tratamento intensivo e outros equipamentos de saúde pública. Quanto maior for a capacidade de tratar os infectados, menor a necessidade de paralisação do setor privado.
Caso um sul-coreano queira saber se está infectado, ele vai a um estacionamento, coleta uma amostra de saliva e, em poucas horas, recebe um SMS com o resultado do exame. É o Estado quem banca toda a operação, sem que o cidadão tire nada do bolso no momento inicial.
É claro que o cidadão acaba pagando ao fim das contas. Afinal, a produção privada sustenta o Estado através de impostos. Por outro lado, toda a sociedade se beneficia da aparente gratuidade. Se aqueles com suspeita de infecção ignorassem o exame para gastar menos, os não-infectados teriam que ficar em casa, sem trabalhar. Vivemos em comunidade.
Motivo nº 2: mesmo para os liberais, o Estado existe para situações como a atual
E aí entra o segundo motivo pelo qual defendo uma expansão dos gastos públicos para combater a pandemia: os liberais historicamente justificam a existência do Estado através de momentos como este, nos quais toda a sociedade se beneficia com a existência de um ente responsável pela coordenação de esforços coletivos.
Quem deve arcar com os custos da pandemia? Nenhum agente econômico do setor privado é culpado pelo que está acontecendo. Trabalhadores temem pelos seus empregos e empresários podem ver os sonhos de uma vida destroçados pela mutação de um vírus, um evento aleatório.
Neste momento, a única forma de minimizar o impacto econômico da pandemia é através do crédito, que nos permite receber hoje recursos que serão pagos amanhã. Num cenário de risco generalizado como o atual, o setor privado é incapaz de prover o crédito necessário para aliviar a situação de trabalhadores e empresários. Restam os bancos públicos e a dívida pública. O Estado nos permite diluir o custo e alongar o financiamento do combate à covid-19.
Apesar de cético com relação à intervenção estatal, não sou libertário ou anarquista. É essencial que os trabalhadores e empresários recebam alguma ajuda para atravessar a tempestade, financiando os gastos de curto prazo com o que será produzido a longo prazo. Lembram do que Friedman disse sobre a Grande Depressão? Em alguns casos raros, é justo que o curto prazo seja priorizado.
A austeridade continua sendo importante
Num cenário em que mais gastos públicos são razoáveis, naturalmente já aparecem suspeitos habituais advogando pela volta da irresponsabilidade fiscal. O fim do teto de gastos está na pauta de muita gente. Até por isto, é importante lembrar que não existe almoço grátis. Após a pandemia, infelizmente, passaremos alguns anos pagando impostos para compensar os gastos de 2020. É uma opção melhor do que a falência generalizada, que dificultaria ainda mais a retomada da economia depois que a pandemia passar.
A conjuntura atual nos ensina, inclusive, sobre a importância da austeridade e dos ajustes fiscais. Rodrigo Constantino critica o plano fiscal de Angela Merkel, que promete combater a covid-19 com a maior expansão de gastos públicos desde a Segunda Guerra Mundial. Prefiro exaltar a austeridade de Merkel, tão criticada pela esquerda nos últimos anos. Na década passada, a Alemanha reduziu sua dívida pública em mais de 20 pontos percentuais do PIB. O ajuste fiscal nos bons momentos permite que, durante uma pandemia, o Estado cumpra seu papel.
O Brasil, por outro lado, passou a década passada gastando o que não tinha. Nossa dívida pública cresceu quase 30 pontos percentuais do PIB nos últimos 10 anos. Como resultado, temos menor poder de fogo contra a covid-19. Este não é um bom ano para praticar a austeridade, mas é o momento ideal para entendermos a importância dela.
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