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“O Jardim das Delícias Terrenas”, tríptico de Hieronymus Bosch (detalhe).
“O Jardim das Delícias Terrenas”, tríptico de Hieronymus Bosch (detalhe).| Foto: Wikipedia

Faz algum tempo que tenho enchido os pacovás dos meus amigos com a história de que “Admirável Mundo Novo” é melhor e mais necessário do que qualquer outra distopia clássica, incluindo “1984”. Não que você deva deixar de viver o pesadelo totalitário descrito por George Orwell. Nada disso. É só que “Admirável Mundo Novo” fala menos do cidadão e mais do indivíduo, isto é, do homem com alma. E, no mais, gosto dessas hierarquias aleatórias mesmo.

No livro de Aldous Huxley, a Humanidade não é vítima de uma opressão nascida do conflito entre os Estados ou da violência física e psicológica tradicionais, perpetradas por aqueles que querem se manter no poder. Por outra, a Humanidade, ou melhor, os indivíduos são vítimas da escolha voluntária de ignorar Deus a fim de idolatrar o cientificismo; de trocar o belo e misterioso pelo que é pragmático e lucrativo; de substituir os altos e baixos da vida pela estabilidade.

Virou lugar-comum dos mais abomináveis dizer que a distopia de George Orwell já se concretizou. Mas o pior é que é verdade. Estão aí os “dois minutos de ódio” que não me deixam mentir. O problema é que “Admirável Mundo Novo” também já é realidade. Vê-se isso no uso indiscriminado de antidepressivos e ansiolíticos, bem como nos livros de autoajuda corporativa que insistem que você pode ter um lucro 0,1% maior se ignorar os valores de funcionários e consumidores.

Mas acho que a prova mais sutil de que “Admirável Mundo Novo” virou realidade está na busca por políticas (e, por consequência, políticos) que, de alguma forma, garantam a “felicidade” das pessoas. Por trás dessa subserviência às promessas de um paraíso irrealizável está nosso desejo de moldar o mundo da forma como o vemos perfeito. Para os que creem, isso é uma heresia; para os que não creem, uma insanidade.

Você é capaz disso?

“Por causa das mães e namorados, por causa das proibições que não eram condicionados a obedecerem, por causa das tentações e do remorso solitário, por causa das doenças e da dor interminável, por causa das incertezas e da pobreza, eles eram obrigados a sentir com mais intensidade. E sentindo com mais intensidade (e ainda por cima na solidão, no impotente isolamento individual), como eles poderiam ser estáveis?”, escreve Huxley sobre os que habitavam o mundo antes de a distopia se tornar realidade literária.

A defesa da vida caótica e incerta, em contraposição à vida ordenada e previsível prometida por coletivismos à direita e à esquerda, dita o tom do romance. Que, não satisfeito, defende ainda o sofrimento (a Cruz) como algo normal e saudável. Graças aos avanços da tecnologia, hoje em dia uma vida mais estável é até possível. O preço que se paga por ela, isto é, a homogeneidade e a conformidade, é que parece a Huxley (e a mim) alto demais.

Noutro trecho digno de nota, o poderoso Mustapha Mond pergunta a um grupo se eles alguma vez na vida tinham se deparado com um obstáculo intransponível ou se sentido levados a aguentar uma espera, ainda que mínima, entre o desejo e a satisfação de um desejo. A resposta, no todo, é negativa. Apenas um menino faz uma ressalva, que funciona mais como um alívio cômico do que como um contraponto ao argumento central de “Admirável Mundo Novo”: o de que estamos dispostos a praticamente qualquer coisa, da escravidão voluntária ao nivelamento dos sentimentos, a fim de termos nossos desejos satisfeitos o mais rápido possível.

Ao pôr a culpa em cada um de nós, seres imperfeitos e infelizes, com nossos valores hesitantes e nossos desejos estúpidos, Huxley pode parecer perverso. Afinal, muito mais conveniente seria pôr a culpa no Estado ou “nos outros”. Apesar do incômodo metafísico, porém, vejo como misericordioso e caridoso esse gesto de mostrar ao leitor um espelho a fim de que ele desperte da ilusão de perfeição hipócrita e se confronte com a porção que lhe cabe nesse latifúndio de ervas-daninhas que é a vida.

Resta saber se, anestesiados pelo tédio ou pela indignação política que no fundo é apenas entretenimento, ainda há alguém capaz de olhar para si mesmo, reconhecer a culpa e pedir perdão pela soberba de almejar uma vida sem solavancos. Ou ao menos sem textos que terminem com uma pergunta indecorosa. Você é capaz disso?

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