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Um monte de cartas: instrumento rudimentar de troca de mensagens.
Um monte de cartas: instrumento rudimentar de troca de mensagens.| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

E aí, tudo bem com vocês? Como vão as coisas? E o tio Zé? E a tia Maria? Ainda reclamando da labirintite? Ouvi dizer que o primo Toninho foi demitido. Verdade? Dureza falar isso, mas o primo sempre foi preguiçoso mesmo. Aposto que ele vai dizer que a culpa é do patrão. Por falar nisso, é verdade que o tio Mário anda dizendo por aí que vai votar no Lula? Esse nunca bateu muito bem das ideias mesmo.

Resolvi escrever hoje esta carta aberta porque sempre gostei de escrever cartas. Digo, das fechadinhas, com selo, carimbo, destinatário, remetente, CEP. Na minha agora remota infância, tinha até um clubinho de troca de correspondências. Clube Ajuda-ajuda. Não tenho a menor ideia do porquê do nome. Só sei que, depois que o clube apareceu numa edição do gibi do Pato Donald, recebi centenas (sim, centenas!) de cartas. Tinha dias em que o carteiro chegava e eu me sentia como a Xuxa naqueles sorteios lá dela.

Aliás, que sensação boa a do carteiro chegando com um maço de cartas! Acho que essa foi a primeira ocasião em que me senti um indivíduo. Que me senti um menino num mundo habitado por desconhecidos. Por gente estranha. Esquisita. Com histórias de vida bem diferentes da minha. Até então, eu convivia apenas com a família e os amigos da escola. Aprender que havia pré-adolescentes e adolescentes em lugares remotos como São Gonçalo do Amarante, RN, me ajudou a desviar o olhar do meu umbigo. Ainda bem.

Gostava tanto de cartas que, aos 8 ou 9 anos, saí pela rua no encalço do carteiro, surrupiando todas as cartas que ele ia deixando nos portões. Naquele tempo e naquele lugar, raras eram as residências com caixinha do correio. Na minha memória, cheguei em casa com umas 500 cartas roubadas – que, na realidade, eram provavelmente cinco. De uma coisa, porém, não esqueço: o toque frio e cortante do couro da cinta nas minhas costas, pernas, braços – onde quer que a cinta pegasse enquanto eu corria desesperado pela casa.

Mas estou falando das cartas fechadas, individuais, de mim para você e vice-versa. Daquelas cartas que você abria com todo o cuidado para não rasgar o conteúdo. Já dessas cartas abertas de cunho político não gosto. E não assino nem sob tortura. Dia desses, aliás, me pediram para assinar uma carta aberta em apoio a Antônio Risério, que estava sendo atacado por escrever algo que qualquer pessoa com dois neurônios percebe: o ódio racial não é mais via de mão única. Risério e os signatários da carta aberta estão certos. Mas não assinei e, por isso, tive de ouvir um monte de impropérios.

Os problemas com essas cartas abertas são dois: a inutilidade do gesto e o tom protocolar. Não gosto de perder tempo, mas até que não me incomodaria nada em participar de uma atividade inútil. Pelo contrário. Ainda mais quando envolve intelectuais, o ideal é desejar que as atividades sejam inúteis, inócuas e inofensivas como essas cartas abertas. Porque quando intelectual decide influenciar e de fato moldar a realidade, já era. O que me incomoda mesmo é o tom protocolar: sério, objetivo, cartorário. Se duvidar, tem até mesóclise. E aqui, por favor, não estou sendo específico; me refiro às cartas abertas em geral.

Mas por que estou falando disso? Assunto chato... Das cartas que recebi na infância não tenho mais nenhuma. Há alguns anos, minto, há muitos anos tentei trocar correspondências com um amigo, mas a experiência não durou muito. Doía o pulso escrever à mão e, por consequência, depois da quinta ou sexta linha eu já estava me despedindo. Além disso, não tínhamos muito o que dizer um para o outro. Acontece.

Tenho, porém, as cartas de um soldado norte-americano para uma enfermeira brasileira, trocadas durante a Segunda Guerra Mundial. Tenho ainda as cartas de um paraguaio para essa mesma enfermeira brasileira. E, antes que você me pergunte, as do paraguaio são cartas de um amor casto, muito mais próximo da amizade do que da paixão. Por falar nisso, a enfermeira morreu sem jamais ter se casado. Achei que você quisesse saber.

E assim esta carta aberta aos leitores da Gazeta do Povo vai chegando ao fim (rimou!). Perdão aos que se decepcionaram, esperando a revelação de algum escândalo ou um posicionamento assim oh-importantíssimo. Agora vou ali tomar o café da manhã, almoçar ou jantar, a depender da hora em que você estiver lendo esta carta. Diga para a tia Anastácia que a Aline manda lembranças. Ela manda também um abraço para a prima Syslaine. A Catota manda um miau. A Dani não manda nada porque está de mau humor. Aguardo ansiosamente uma resposta. E aproveita porque fiquei sabendo que o selo vai ficar mais caro a partir da semana que vem.

Abraços fraternos, PPJ.

PS. Ah, sim. Outra coisa que me incomoda nas cartas abertas é a ausência do sempre agradabilíssimo PS – post scriptum, para os íntimos ou pernósticos. Adorava cartas com PS. Melhor ainda se tivesse PS1, PS2, PS3. Imaginava o remetente, quem quer que fosse, fazendo uma atividade qualquer, lembrando da carta supostamente terminada, às vezes até envelopada já, e pensando “ah, preciso falar mais isso e mais aquilo para aquele chato. Ele vai gostar”. E eu gostava mesmo.

PS1. As cartas roubadas foram devidamente devolvidas.

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