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A raiva desperta desejos de morte e vingança. Mas tudo muda quando, por mais piegas que isso possa soar, você enxerga a dor do outro.
A raiva desperta desejos de morte e vingança. Mas tudo muda quando, por mais piegas que isso possa soar, você enxerga a dor do outro.| Foto: Reprodução/Twitter

Houve um tempo em que vivi nas trevas. Alheio ao bem que me cercava, e que entendia como mal, sentia muita raiva. Para a qual via apenas duas saídas: a morte ou a vingança. Como para a primeira me faltasse a covardia, sobrevivi àquele período negro alimentando fantasias de vingança contra tudo e todos. Contra Deus e o mundo. Até que um dia percebi um rombo na minha alma. Depois desse dia, como por milagre, passei a enxergar as crateras que todas as pessoas levam ao peito.

Dizer que minha vida mudou de um dia para outro seria um lugar-comum, mas não um exagero. Foi assim, vapt-vupt, que passei a ver antigos inimigos como figuras frágeis (às vezes irritantemente frágeis), cada qual com um buracão assim, ó, na alma. Por consequência, abdiquei da raiva crônica, embora às vezes ainda tenha surtos de raivite aguda. A morte deixou de ser um desejo, como direi?, macabro. E as fantasias de vingança viraram, sei lá, purpurina.

Não sei o que provocou aquela visão reveladora de que o caminho para qualquer espécie de redenção estava na descoberta do outro. Terá sido Jordan Peterson? Não. Foi antes. Terá sido algum filósofo estoico? Terá sido Shakespeare? Fernando Pessoa? Ou terá sido alguma passagem bíblica? Não sei, não lembro. Tenho cá para mim que foi uma mistura de tudo isso, com pitadas do mais improvável dos escritores para se consumir como autoajuda: David Foster Wallace.

Primeiro foi um trecho à toa da coletânea “Consider the Lobster” [Pense na lagosta]. Nele, DFW descrevia um personagem infeliz qualquer, desses que reclamam que o mundo todo está contra ele. E (cito de cabeça) conclui dizendo que algumas pessoas não percebem que são infelizes apenas porque são uns babacas. Por entre uma fresta na minha babaquice, entendi subitamente a razão da minha infelicidade.

Depois foi “This is Water”, o discurso de formatura já muito citado cá por estas plagas. Ali a ideia é mais simples e direta: a pessoa que te fecha no trânsito, que fura fila, que faz um comentário perverso, etc. é também uma pessoa ferida. Uma pessoa com um rombo no peito tão grande ou maior do que o seu. Ou menor, mas mais profundo. Reconhecer a dor do outro é, para Wallace, o primeiro passo para conseguir viver em sociedade.

Aqui infelizmente o dever jornalístico me obriga a informar que David Foster Wallace, tomado por uma depressão inconsolável, se suicidou. Se você quer entender como alguém que escreve "This is Water" é capaz de abdicar da vida, pergunte ao meu amigo Francisco Escorsim. Ele tem uma ou duas palavras a dizer sobre esse tipo de naufrágio pessoal.

Retomando. Não é fácil ver a dor de quem te xinga, te trai, te engana, te abandona ou te hostiliza por estar usando um “te” mais coloquial nesta frase. Mas tento. E consigo num dia, fracasso no outro, consigo de novo, fracasso mais uma vez. Há tempos em que os sucessos superam os fracassos e outros tempos em que vice-versa. Quando consigo, é aquela maravilha: a ofensa, traição, abandono e hostilidade ganham outros contornos. São apenas gritos de dor. Impossível não se apiedar do chihuahua que, amedrontado, lhe mostra os caninos ameaçadores. Quando não consigo...

Quando não consigo, o que aumenta é o rombo no meu próprio peito. Minha dor mui particular. E quem se transforma no cãozinho assustado sou eu. O elogio vira crítica. Qualquer piadinha sobre os aspectos ridículos que reconheço em mim ganha contornos de perversidade. Amigos de infância viram inimigos mortais. E toda palavra dita ou escrita soa como vingança.

Gostaria (e vou!) encerrar este texto enfatizando que a dor... Ah, a dor nos cerca. Vê ali aquele sujeito furioso que o ataca com uma metralhadora de pontos de exclamação? Isso é pura dor. Uma dor tão insondável que muitas vezes até o ofensor desconhece. É a dor de quem caminha e tropeça e rala os joelhos e torce o tornozelo e tem fome e tem sede no longo e árido trajeto daqui até a redenção.

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