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Marimbondos são só abelhas com um péssimo departamento de relações públicas.
Marimbondos são só abelhas com um péssimo departamento de relações públicas.| Foto: Pixabay

Se você mora em Curitiba e anda visitando livrarias e sebos em busca de livros dos grandes cronistas do passado, peço desculpas. O responsável pelas prateleiras esvaziadas de Fernandos Sabinos, Ottos Laras Resendes e Paulos Mendes Campos sou eu. Tenho comprado tudo o que encontro pela frente, relendo e aprendendo.

E uma coisa que salta aos olhos nessas leituras é a ausência de temas polêmicos nas crônicas. Há política, claro, mas ela é circunstancial – um nome transformado em caricatura aqui e ali, uma cena de pieguice marxista acolá, referências infantis a certa “igualdade natural” no mundo. Mas é difícil encontrar boas crônicas que tratem de casos pontuais envolvendo drogas, violência doméstica, racismo, homofobia ou quaisquer de nossos problemas contemporâneos.

Gratidão, misericórdia, tolerância

Alguém mais viciado nessas pautas todas pode dizer que a negligência de assuntos tão graves é típica dos cronistas homens, brancos e héteros. Mas não vou entrar nessa querela. Não vale a pena. Já escrevi mais de um texto falando da importância de se ter um olhar compassivo e generoso em relação aos nossos antepassados. E de compreender que havia nessa “negligência” uma quantidade hoje inconcebível de gratidão, misericórdia e tolerância.

Gratidão?! Misericórdia?! Tolerância?!, você talvez se pergunte indignado. E talvez argumente que a intelligentsia da qual faziam parte os cronistas d’antanho, isto é, do tempo em que não havia nada de mau em escrever “d’antanho” era formada só por comunistas. E comunistas são, por definição, incapazes de expressar gratidão, misericórdia e tolerância. Mas aí eu serei obrigado a deixá-lo em paz com este argumento irrefutável. Porque o objetivo, aqui, não é inflamar os ânimos.

Onde estava mesmo? Ah, sim. Gratidão, misericórdia e tolerância. Que se manifestavam em crônicas que não almejavam transformar o mundo nem apontar o dedo para os malfeitos alheios nem alertar ninguém de que a Humanidade ruma perigosamente para um abismo. Pelo contrário, os textos buscavam exaltar características boas do cotidiano que talvez passassem despercebidos pelos leitores. Daí a figura hoje um tanto quanto ridícula do flâneur.

Veja o caso daquele que é considerado o maior cronista da literatura brasileira (não é), Rubem Braga. O homem viu de perto os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no entanto, seus textos estão cheios de gratidão, misericórdia e tolerância, retratadas em situações aparentemente sem nenhuma consequência maior para o esforço de guerra ou para a história da Civilização Ocidental, mas extremamente importantes para os indivíduos nelas envolvidos.

É como se os cronistas dissessem que, apesar do ruído nas outras páginas do jornal, ainda havia música, e da boa, para quem tivesse ouvidos de ouvir. Até por isso são incomumente comuns nas crônicas desses autores referências a passarinhos e outros sons da natureza.

E os marimbondos?

E o que isso tudo tem a ver com marimbondos? É que hoje acordei pensando nesses insetos que tanto me fascinavam na infância. Um fascínio misturado com repulsa e medo. Uma vez, na época em que eu queria ser entomólogo, peguei uma cadeira e passei uma tarde inteira observando a caixa de marimbondos. Às vezes um ou outro se aproximava, como se perguntasse “Tá olhando o quê, cara?!”. Mas eu só observava e fazia anotações que, na minha fantasia egocêntrica, provavelmente mudaram para sempre a história da marimbondologia.

No dia seguinte, porém, fui tomado por uma estupidez que confundi com coragem (é sempre assim, não?) e achei que era uma boa ideia cutucar a caixa de marimbondos. Primeiro peguei um Instrumento Artesanal de Disparo de Projéteis, também chamado de estilingue, e passei a bombardear a caixa de marimbondos com pedrinhas. Como minha mira era péssima, contudo, a ofensiva só serviu mesmo para irritar os animais. Entorpecido de ousadia que estava, depois peguei um cabo de vassoura e o usei como uma espécie de lança. Errei, mas o cabo de vassoura passou perto o bastante para que os marimbondos ficassem mais P.U.T.O.S. (Potencialmente Ultra Tomados por um Ódio Surreal) comigo. Aí, infantilmente embriagado de soberba, peguei uma vareta curta para derrubar a colmeia.

Foi quando os marimbondos decidiram dar um basta à situação e partiram para cima de mim. Saí chorando e gritando e, ao ser aferroado, praguejei contra Deus e o mundo e os insetos. Quando minha mãe veio ver o que era aquela gritaria toda, se eu for aí e você tiver aprontado você me paga, Paulinho!, disse a ela que os marimbondos, assim do nada, só porque é do feitio deles, tinham me atacado. Não era uma mentira; era assim que eu, ignorante da minha natureza perversinha, via a realidade.

Ainda hoje os marimbondos me fascinam. E me causam repulsa. Há ainda noites em que sonho que os estou destruindo, simplesmente porque a natureza deles me incomoda. E, nesses sonhos, sou herói de uma guerra interminável contra um inimigo cuja maldade está mais na ideia do que no ato. Afinal, marimbondos são só abelhas com um péssimo departamento de relações públicas.

E daí?

Os grandes cronistas de um passado nem tão recente assim contavam suas histórias sem se preocupar com um eventual “e daí?!” do leitor. É uma postura compreensível, mas que não condiz com a relação atual, muito mais próxima, entre cronista e leitor. Hoje é preciso provar que o leitor não perdeu tempo lendo algo inútil. Aparentemente tudo, até a gratidão, misericórdia e tolerância, precisam ter uma finalidade prática.

O que aprendi com os marimbondos, pois, foi que gosto de cutucá-los, provocá-los e atiçá-los. Mas não gosto de levar ferroada. Desse impasse entre menino perverso e inseto injuriado nasceu a prudência – que, em termos freudianos, nada mais é do que a velha e boa arte de dar ouvidos ao superego.

É bom despertar as pessoas da letargia, do pensamento pré-fabricado, quando não do sono falsamente tranquilo da mentira. Mas também é bom e necessário reconhecer que no menino curioso e provocador há um bocado de perversidade, de repulsa infundada, de desejo de agir livre e irresponsavelmente, só para saber até onde vai seu poderzinho de criança portadora de polegar opositor.

E é por isso que, quando bate aquela vontade inexplicável de mexer com caixas de marimbondos, hoje em dia antevejo a ferroada, recolho o estilingue e volto para meu posto de observação, de onde admiro os monstrinhos alados potencialmente perigosos, mas também eles divinos.

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