Terça-feira (19). Estou cansado. E, confesso envergonhadamente, estou tomado por um cinismo infeliz acumulado ao longo de décadas. É assim que enfrento o friozinho para entrar num culto evangélico pela primeira vez em trinta anos. A denominação – Igreja Batista da Lagoinha – é totalmente desconhecida para mim. "Vamos ver o que é que acontece", penso, a título de automotivação. Antes, permita-me esclarecer o “cinismo infeliz”. (Se você estiver interessado apenas na parte em que falo de Alexandre de Moraes, por favor, clique aqui).
Não apenas acumulado, esse cinismo infeliz foi cultivado ao longo de três décadas. A origem, eu a localizo na igreja evangélica que eu era obrigado a frequentar enquanto pré-adolescente. Durante um tempo, achava que o problema estava na obrigatoriedade. Depois, entendi que eram outras coisas, sobretudo a música ruim e as pregações que misturavam religião e política, sem falar no moralismo sexual que definitivamente não comovia um menino pubescente.
Depois vieram anos e anos consumindo jornalismo e entretenimento que retratavam o mundo evangélico como um amontoado de gente na melhor das hipóteses ignorante e na pior, mal-intencionada. Por fim, teve aquela tarde de domingo em que, sem nada melhor para fazer e movido por uma curiosidade mórbida, liguei a TV para acompanhar o culto de um desses pastores caricatos – e fiquei assustado com a caricatura que vi.
Me sentei na antepenúltima fila. Cruzei os braços. Não estava mal-humorado nem nada. Era só meu jeito de esperar. A todo instante, porém, era levado a estender a mão e abrir um sorriso para os desconhecidos que vinham me cumprimentar com o “paz, irmão” que não ouvia há 30 anos. Já aí desmoronou o cinismo infeliz. “Como fazem falta gestos assim, de generosidade desinteressada”, pensei.
Começou o culto. Não havia liturgia alguma. Tudo era muito espontâneo – e não sei direito o que pensar a respeito disso. Digo, sou católico e conservador; gosto da Tradição. Mas havia tanta boa intenção nessa espontaneidade que era difícil não admirá-la. A primeira meia hora foi tomada por músicas bem melhores do que as que animavam os cultos da minha época. Destaque para uma moça de dreads coloridos que cantava divinamente bem e com um fervor digno de sinceros aplausos.
Depois das músicas vieram pastores que, alternadamente, oraram cada um por uma causa: família, saúde, trabalho (não dinheiro; trabalho) e Pátria. Ao meu redor, chamou a atenção a sinceridade com que as pessoas pediam e sobretudo agradeciam. Pensei que naquele exato momento alguém mais cínico e infeliz do que eu provavelmente estava entrando nas redes sociais para reclamar, reclamar, reclamar – num rito semelhante ao de uma oração blasfema. E até por isso me senti cercado por pessoas de bem.
Improvável
Por fim, começou a pregação. Não sem antes o pastor pedir que a bandeira do Brasil fosse mantida no telão. Intitulada “Deus Capacita os Improváveis”, a pregação foi feita tendo por base a história de Davi e a conversão do apóstolo Paulo ao Cristianismo. (A coincidência dos nomes não me escapou). E foi ao longo do monólogo que durou uma boa hora que refleti sobre a possibilidade de Alexandre de Moraes cair do cavalo.
Paulo, talvez você se lembre das aulas de catecismo, teve uma epifania e “caiu em terra”. Ou seja, ele pode ter mesmo caído do cavalo, como popularmente se diz, mas pode muito bem ter “caído da própria altura”. Não importa. O que importa é que um homem que antes perseguia os cristãos se tornou um cristão perseguido por pregar os valores que, como bem expõe Tom Holland no obrigatório “Domínio: o cristianismo e a criação da mentalidade ocidental”, moldaram a Civilização que nos rodeia.
O que aconteceria se um ministro do STF passasse pela mesma experiência e mudasse completamente de ideia? E aqui acredito que valha um aviso: sou totalmente responsável por essas elucubrações que associam a história bíblica ao Brasil do ano da Graça de 2022. O pastor jamais mencionou o nome de qualquer autoridade. Até porque o objetivo dele era alcançar o homem comum, e não tecer considerações jurídico-políticas.
Imaginei o pedido de desculpas, os debates sobre a sinceridade ou não de um arrependimento, uma turma se sentindo traída e a outra desejando vingança. Imaginei, porque imaginar é o que faço de melhor, o martírio por que passaria o ministro ao substituir o voluntarismo maquiavélico pelo que é belo & moral. Pelo que é correto e justo. Ou ao menos pelo que é constitucional. E, já que estava no embalo, imaginei até um Alexandre de Moraes asceta, a barba comprida adornando a cabeça calva, envolto nos retalhos de sua autoridade togada, imerso numa redenção para nós talvez incompreensível.
Alexandre de Moraes é um dos “improváveis” de que falava o pastor. A lógica (cínica, infeliz e elementar) nos leva a crer que ele jamais alcançará qualquer epifania que o desvie do caminho autoritário que vem trilhando. E eu estaria mentindo se dissesse que tenho esperança de que esse milagre venha a se concretizar. Assim como aconteceu com o apóstolo Paulo e incontáveis pessoas que não figuram nem na Bíblia nem nas manchetes dos jornais, o poder tende a despertar o que há de pior nas pessoas. Uma tentação que os vaidosos têm ainda mais dificuldade para rejeitar.
Saí da igreja igual, mas diferente. Não tenho intenção de frequentá-la nem nada. Mas, depois de duas experiências nos círculos infernais (aqui e aqui), foi bom saber que há no mundo pessoas gratas. Pessoas que, a despeito do olhar cínico e infeliz de tantos, não hesitam em enfrentar o cansaço e o friozinho curitibano para, numa noite qualquer de terça-feira, refletir. Hoje, com a esperança renovada, posso atestar: o cidadão de bem existe. E está mais perto de mim e de você do que fazem supor os tratados sociológicos.
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