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Por isso nós, jornalistas, aprendemos desde o primeiro dia de uma faculdade absolutamente inútil que o fato de um cachorro morder uma pessoa não é notícia.
Por isso nós, jornalistas, aprendemos desde o primeiro dia de uma faculdade absolutamente inútil que o fato de um cachorro morder uma pessoa não é notícia.| Foto: Bigstock

Meu amigo A. Corrêa, que já foi até demitido por causa do acento errado no sobrenome, me cobra mais textos banais, sobretudo em tempos de guerra. Ele quer que eu escreva sobre um diálogo que tive com a minha mulher ou que conte algo engraçado que a Catota fez. Respondo que pretendo escrever mais banalidades do tipo – e pretendo mesmo. O que não digo é que estou há horas imaginando a cena em que uma pessoa é demitida por causa do acento errado no sobrenome.

Outra coisa que não digo, até porque só me ocorreu depois, bem depois, é que o leitor em geral odeia o banal. Não só nos meus textos. O leitor odeia a banalidade em geral. Por isso nós, jornalistas, aprendemos desde o primeiro dia de uma faculdade absolutamente inútil que o fato de um cachorro morder uma pessoa não é notícia. Agora, se uma pessoa morder um cachorro, você tem uma manchete e tanto!

Não preciso nem dizer que discordo veementemente disso, né? Mas repito para que fique registrado pela eternidade (ou até quando os delírios nucleares de Vladimir Putin permitirem): discordo veementemente disso. Afinal, um jornalista bom, mas bom mesmo, provavelmente vai investigar quem é o dono desse cachorro que anda por aí mordendo as pessoas – e, se for mais do que bom, se for ótimo ou até excelente (e sobretudo sortudo), vai acabar descobrindo que o dono ganha milhões com um esquema de corrupção, mas se recusa a pagar por uma focinheira.

Outra coisa banal na teoria e extraordinária na realidade é o indescritível (porque chato) ato de ler um livro. Se o livro for de um autor nacional, então, aí é que é extraordinário mesmo. Mas, antes de falar sobre um livro que estou lendo, me permita abrir um parágrafo totalmente extra neste texto ordinário, sim?

É que me ocorreu agora falar dessas pessoas que separam os elementos da palavra. Eu garro ódio, como diz minha amiga Isabella – que, até onde sei, nunca foi demitida por causa dos dois “l” no nome. Sabe aquela pessoa que diz ter um gosto eclético para música e nenhum pré-conceito? Ou então aquela que está no meio do texto, pensa em escrever extra-ordinário, percebe o ridículo e abre um parágrafo para falar disso? Então.

Antes de tropeçar no extraordinário, eu dizia que estava lendo um livro. E estou mesmo. “A Descoberta do Outro”, de Gustavo Corção. A certa altura, o narrador tem que fazer um exame de raio-X. Ele teme estar com tuberculose. Ele vai lá, faz o exame e recebe o resultado: pulmões limpinhos. E aí... Aí, meu amigo e amiga, fiquem com este trecho daquele que, sem dúvida nem exagero, é o mais subestimado dos escritores brasileiros.

“A vida, em toda sua extensão, surgiu-me como um problema de insuportável extravagância. O que fazer com meus pulmões normais? Essa pergunta podia ser generalizada para todas as vísceras e para toda a vida. (...) A verdade é que todas as coisas que fazemos giram em torno dum buraco, duma falta, de qualquer erro que demanda ratificação, e por estranha irrisão a maior parte de nossos entusiasmos vem deste constante remendar. Diante da normalidade, ficamos perplexos. O mundo inteiro vive assim. Haja guerra ou peste nas cidades: todos ficam alvoroçados e otimistas. Cada um sabe exatamente o que deve fazer e todos se empenham na tarefa comum de combater o mal”.

Uau. Mil vezes uau. Uau à centésima potência. São tantos os uaus que pairam no meu escritório neste momento que nem sei como continuar o texto. Corção expõe com brilhantismo digno de Nobel o incômodo que a banalidade (ou normalidade, como ele prefere) nos causa. O diálogo com minha mulher, o truque que a Catota não aprendeu, o cachorro que morde a pessoa: tudo o que está devidamente nos eixos faz com que nos sintamos presos a uma previsibilidade sufocante.

Para o leitor, o banal é quase um insulto. Afinal, como você, seu cronista de araque, ousa dar peso extraordinário a uma pia cheia de louça lavada, a um carro com o tanque cheio, a um homem saudável que, em silêncio, passa na rua carregando segredos insondáveis, a uma abelha que zumbe, zumbe, zumbe e vai embora?

Já a guerra e a peste, ainda mais quando uma se segue a outra, fazem com que nos sintamos úteis neste mundão. De repente, nossos tuítes ganharam importância e relevância. A análise cirúrgica sobre as reais intenções de um déspota lunático nos faz abrir um sorriso de autocongratulação. Até nossas mais ridículas teorias resvalam no real caótico do noticiário – o que nos deixa arrepiados. É como se a história, aquela da qual juramos fazer parte, vencesse o desprezo que o tempo nutre por nossas vidas historicamente insignificantes.

Muitos se perderão nessa sensação falsa. Mas não se preocupe. Há camisas-de-força para todos. Outros, não sem uma boa dose de sacrifício, manterão a sanidade e continuarão dando “bom dia” e “boa noite”, rindo de piadas sem graça e, aqui e ali, vendo beleza na rotina segura dos tempos de paz. E é entre esses que quero estar quando – e  se – o  extraordinário bater à minha porta.

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