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Pare um instante, vasculhe aí as suas convicções e tudo o que você sabe sobre a Covid-19 até agora. E responda sem medo à pergunta por mim proposta.
Pare um instante, vasculhe aí as suas convicções e tudo o que você sabe sobre a Covid-19 até agora. E responda sem medo à pergunta por mim proposta.| Foto: Pixabay

Certo. Eu sei que você jamais se envolveria com política. Eu também não. Tenho asco só de imaginar aquelas discussões tolas nos diretórios municipais, os slogans, os tapinhas nas costas. É um mundo que me causa tanta repulsa que, de dois em dois anos, faço o esforço de dar uma passadinha na tediosa festa da democracia só para delegar essa função a alguém.

Mas vamos supor, só para que este texto faça sentido, que você, depois de uma noite de sonhos intranquilos, acorde e se veja metamorfoseado num alcaide em plena pandemia de Covid-19. Você abre os olhos devagar, limpa a remela, olha em torno e de repente se percebe com a caneta na mão, cercado por burocratas que esperam por sua decisão como Golden Retrievers esperam pela bolinha.

Passados tantos meses desde que a doença surgiu na China e se espalhou pelo restante do mundo, depois de intermináveis discussões sobre lockdowns, máscaras e hidroxicloroquina, depois de campanhas pelo achatamento da curva, de gráficos mostrando ou a quantidade de mortos ou o estrago na economia, depois de a Covid-19 levar famosos e anônimos, depois de declarações da perdida OMS, depois até de denúncias de que havia cachorros transmitindo Covid-19 nos shoppings das cidades – depois de todas essas informações, o que você faria?

Mas calma. Não se apresse. Antes de jogar a bolinha para os Golden Retrievers ansiosos por sua decisão, você precisa refletir sobre duas questões que não são das mais simples. Primeiro, a questão superficialíssima de seu futuro político. Dizem que se você não decretar lockdown e não proibir a hidroxicloroquina a derrota é certa nas próximas eleições. Dizem que se você decretar lockdown e liberar a hidroxicloroquina também.

O que, pensando melhor, é até um alívio. Afinal, se a consequência de sua decisão, seja ela qual for, é a derrota nas próximas eleições, isso significa que você é mais livre do que nunca para decidir o que achar melhor. Isto é, com base em seus valores morais e intelectuais mais profundos. Uma decisão tomada com sabedoria, por mais equivocada que ela venha a se mostrar.

Mas daí você se lembra de uma coisa bem chata. Sabe todas aquelas horas que você passou em reuniões no diretório municipal do partido XPTO, debatendo sobre nada e coisa nenhuma, ouvindo publicitários com cara de enfado detalharem campanha após campanha, estudando pesquisas eleitorais, e dando e recebendo tapinhas nas costas? Pois então. Tudo isso prejudicou, e muito, sua capacidade de entender um gráfico, de escolher esta ou aquela como a fonte de informação com mais credibilidade e até de ler e entender a bula da hidroxicloroquina.

Consciência do papel histórico

E agora você precisa tomar aquela decisão que afetará a vida de milhares ou milhões de pessoas. Não sem antes pensar na segunda das questões nem tão simples assim que anunciei alguns parágrafos atrás: como você será lembrado por essa decisão? Porque seu lugar na história municipal já está garantido. E aquele retrato todo bonitão ali na parede é um lembrete também disso. Não que eu queira botar muita pressão, mas daqui a décadas, quando as pessoas se lembrarem da Grande Crise do Coronavírus 2020, elas se lembrarão de você. E o julgarão por sua decisão.

Lembra do prefeito Fulano na GCC2020? Minha avó perdeu o emprego por causa dele. Ou então: lembra do prefeito Sicrano na GCC2020? Minha tataravó estava passeando no shopping, toda alegre, mas pegou Covid-19 (dizem que de um cachorro!) e morreu. Ou ainda: lembra do prefeito Beltrano na GCC2020? Meu bisa gostava de contar que foi criminoso por uns dias. Só porque estava passeando no parque, sem máscara, e acabou preso. Um último: lembra do prefeito Zé-Qualquer na GCC2020? Minha nona conta que nunca foi tão feliz quanto naquela época em que ficou em casa, pôde cuidar das plantas e dos gatos, ler um paulocoelhozinho clássico à noite, lutar contra o fascismo nas redes sociais durante o dia... Ah, que tempo bom!

E assim por diante.

Se você me leu até aqui e está se perguntando o que pretendo com este texto, respondo: quero que você, por um instante apenas, se coloque no lugar do seu prefeito ou governador e tente tomar uma decisão com base em suas convicções sobre a Covid-19 – se é que você as tem. Porque, reconheçamos, é muito fácil ficar apontando o dedo para o prefeito que decidiu liberar tudo ou rindo do prefeito que sugeriu aplicações de ozônio no reto.

E antes que você me coloque contra a parede, me adianto: de minha parte, levando em conta as parcas convicções que consegui formar nesses muitos invernos que já vivi e me imaginando confortavelmente sentado na cadeira de Chefe do Poder Executivo Municipal, talvez bebendo um uisquinho e fumando um Cohiba, tendo diante de mim burocratas ansiosos por minha decisão e milhões de pessoas preparadas para dizer que sou um gênio ou um idiota, dependendo de qual medida anunciar, decidiria que.

[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]

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