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Cicloativismo, maconha e coragem estampada na camiseta: aos poucos a serpente vai chocando seus ovos.
Cicloativismo, maconha e coragem estampada na camiseta: aos poucos a serpente vai chocando seus ovos.| Foto: Paulo Polzonoff Jr

“O que é que estou fazendo da minha vida?”, me pergunto pelo caminho. A dúvida existencial tem um culpado: meu editor, esse personagem que imagino interpretado por Francisco Milani. Ao que parece, ele está disposto a dar início a uma série de reportagens intitulada “Polzonoff se infiltra na Esquerda Bizarra”. No episódio de hoje, entro num porão vegano e me infiltro na festa-estranha-com-gente-esquisita que é essa extrema-esquerda identitária, ambientalista e cannabinófila.

O motivo do evento em si não tem muita importância. Trata-se do lançamento da pré-candidatura à reeleição ao cargo de deputado estadual de Goura Nataraj – cicloativista, professor de yôga (não confundir com ióga) e filósofo. Na verdade, o evento é apenas um pretexto para reunir uma turminha do barulho que gosta de enrolar um bagulho. (Desculpe, não resisti). De novo: o evento é um pretexto para reunir essa gente incapaz de arrumar o próprio quarto, mas que se acredita capaz de consertar o mundo.

Chego esperando encontrar um congestionamento de bicicletas na rua calma ao lado do Cemitério Municipal. Nada. Na porta do bar, sou interpelado pelo indefectível assessor que exige um pré-cadastro para entrar na festa. Pré-cadastro? Não fiz pré-cadastro. Mas tá tudo bem, tudo na paz, tá ligado? Preenche uma ficha aqui e entra. Não sem antes passar pela revista. O segurança tateia meus bolsos e sente um volume estranho. Tiro a caneta e o bloquinho e digo: “Sou poeta”.

O lugar é um porão com um palco diante do qual há uma bicicleta cujas rodas, iluminadas, formam um "G" e um "O". Porque sou pontual encontro o salão com umas poucas almas tão pontuais quanto eu. O que me permite observar com cuidado o ambiente. No ar, há um cheiro pesadíssimo de... incenso. Que queima por todo o salão, inclusive sobre tampos de madeira – o que me faz temer um pouco, só um pouquinho, pela minha vida.

Circulo pelo salão. Sinto todos os olhares voltados para mim – um homem sozinho, de meia idade, calvo, branco, sem coque samurai e que não para de escrever no celular. “Meu editor deveria ter vindo comigo”, penso, diante de uma mesinha cheia de material publicitário enaltecendo o mandato do deputado. Há panfletos e adesivos defendendo causas diversas, desde o fim dos rachas e o LGBTismo até a legalização da maconha. Mais tarde constataria que os adesivos para os maconhófilos foram os primeiros a acabar.

Zé Dirceu 5G

Estou com fome, mas a única coisa no cardápio é um sanduíche árabe vegano ao preço de R$25. Amaldiçoo pela última vez o editor e... Mas o que é que é isso? O que é que estou vendo?! Atrás de mim, um homem tira um saleiro do bolso e o oferece a uma moça. Ela faz que sim com a cabeça e lhe estende a mão. O homem derrama um pouco de sal na mão da moça, que a leva ao nariz. “Essa coisa de cheirar sal deve ser novidade da juventude”, penso. Já mencionei que havia muitas crianças presentes ao evento? Pois.

Arranjo um cantinho. No palco, um cantor desafinado toca uns poucos versos de “Mambembe”, de Chico Buarque. Mas logo é interrompido por alguém e desaparece misteriosamente, dando lugar a um som mecânico ligeiramente menos desagradável. Elza Soares ou algumas dessas cantoras com voz de criança. O lugar começa a encher. Reparo que as camisetas de todas as pessoas expressam algum tipo de causa: "Geração 68", "The Future Is Ours", "Política Faz Meu Gênero" e, claro, "Lute Como Uma Garota". Eu mesmo estou usando uma camiseta do “Guns ’n’ Roses” – o que quer que isso signifique.

À medida que as pessoas vão chegando e tirando as máscaras (as literais, porque as metafóricas são permanentes) e se cumprimentando, também começam os inevitáveis debates políticos. É chegada a hora de aguçar os ouvidos. Me chama a atenção um moço alto, de seus 30 anos, que discursa para uma plateia de três pessoas como se fosse uma espécie de José Dirceu 2.0. “Stalin falou que...”, diz ele, mas perco o complemento. Droga. “Tem candidatos que querem vencer e candidatos que só querem aparecer”, continua o palestrinha, mas não sei a quem ele está se referindo. “O importante é construir um grupo político, independentemente de partido, e principalmente pôr o nome em exposição”, ensina. “Então é sobre isso”, penso.

O Zé Dirceu 5G, então, começa a falar entusiasmadamente sobre a disputa pela prefeitura de Paranaguá. Ele fala como se conquistar o poder na cidadezinha litorânea aqui no Paraná fosse determinante para o futuro da Civilização. O assunto me aborrece e, no mais, me distraio ao ver alguém que parece o Leandro Narloch nos tempos da faculdade.

“Gosto de provocar motorista de Uber”

Atrás do palco há uma exibição de slides que mostram o deputado Goura curtindo a vida adoidado. Parece até o lançamento de uma linha de bonequinhos do político-zen. Tem o Goura Santo Daime, Goura Montanhista, Goura Motorista de Kombi, Goura Pedreiro (ou pelo menos que tirou uma foto numa obra), Goura Marceneiro, Goura Defensor dos Jornalistas, Goura Com Alguém Supostamente Importante, Goura Faz Joinha, etc. Enquanto isso, num canto do salão, o verdadeiro Goura tira fotos com beldades de cabelo azul e piercing no nariz. O deputado e as belas seguram cartazes contra os agrotóxicos (ideia que deu muito certo no Sri Lanka), pela legalização da maconha e em defesa do bambu (é, bambu). Quando digo que a democracia se transformou num grotesco concurso de popularidade...

Lembra do pessoal que gosta de consumir sal pelo nariz? Agora eles estão atrás de mim e conversam animadamente sobre... drogas. O homem tenta impressionar a mulher com uma história envolvendo uma visita a uma boca de fumo e uma amizade-relâmpago com um traficante. De acordo com o relato, ele teria explicado ao traficante como seria bom poder vender drogas legalmente, pagando impostos e tudo. “Ah, mas aí os outros dizem que é contra a família. E o álcool?”, rebate a moça, que não para de passar a mão no nariz, coitada. Deve ser rinite. Aí o homem eleva o tom de seus feitos heroicos narrados para seduzir a donzela do nariz ligeiramente avermelhado: “Sabe o que eu gosto de fazer? Eu gosto de provocar motorista de Uber”, diz ele, imaginando a si mesmo como um Che Guevara redivivo.

Consulto o relógio. São 19h22. Saí para pegar um ar, mas acabei pegando mesmo é THC. Sem nenhum constrangimento, uma dúzia de pessoas fumava maconha. A brisa era pesada. “Que nada, aqui pode fumar tranquilo”, disse alguém para alguém. Fiquei ali, na esperança de ouvir algo interessante. “Sinto a energia da mudança”, disse uma moça. “Imagina mais quatro anos de Bolsonaro. A gente pira”, continuou ela. Ali perto, um alemãozão cativava os amigos com acusações. “Nunca teve tanta corrupção estruturada como hoje. Eles dão licenciamento [suponho que ambiental] para tudo. Na época do Lula não era assim”, disse. Todo mundo concordou com a cabeça.

Uma moça bonita sobe ao palco. Ela pede para as pessoas aplaudirem os VIPs presentes. Quase tutti buona gente. Uma vereadora do PT, um representante da OAB, gente do PSOL, o cônsul do Sindicato dos Professores, militantes do PCdoB e organizadores da Marcha da Maconha (que são entusiasmadamente aplaudidos pelos cloretodessodiômanos, com direito a uhu! e tudo). Tinha até gente de uma organização chamada Policiais (eu ouvi vaias? sim, eu ouvi discretas vaias) Antifascismo (aplausos). Penso que esse pessoal adora dizer que não reconhece autoridade, mas corre prestar vassalagem quando o senhor feudal defende a mesma causa.

O texto está terminando e nem falei do pintor ultranaïf e suas pinceladas cheias de furor artístico, mas paciência. A festa tá boa, mas preciso ir porque esqueci as roupas no varal. Na saída, enquanto tentava me desviar de dois colegas que me reconheceriam ali, fiquei frente a frente com o deputado. Abri um sorriso, apertei a mão dele, disse “prazer” e fui embora. Pelo menos acho que foi isso que aconteceu. A brisa estava pesada.

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