Li “Torto Arado”, o celebrado romance naif de Itamar Vieira Junior, determinado a gostar dele. Não por ranhetice às avessas, e sim porque ando precisando de um romance brasileiro contemporâneo que me faça bem à alma. Para eu voltar a acreditar que escrever vale a pena. E também para me deleitar em referências próximas e na minha língua.
A última vez que isso me aconteceu foi há bons quinze anos, com “O Filho Eterno”, de Cristóvão Tezza. Se bem que a reação sentimentaloide ao livro, totalmente alheia às qualidades perenes e obcecada com a questão autobiográfica da obra, já prenunciava um futuro nublado para a nobre arte de contar histórias por escrito – e em português brasileiro.
Mas não deu. “Torto Arado” é chinelo havaiana, é miojo com vina, é sertanejo universitário. É tudo isso misturado ao proselitismo mais simplório e ao maniqueísmo mais infantil. Dá para ver em cada linha do romance de Vieira Junior o esforço do autor para contar uma história que ele acredita capaz de transformar o mundo. Isso sem nunca, em nenhum momento, alcançar a hipoderme de seus personagens unidimensionais.
Nem tudo é desastre, contudo. Vendo pelo lado bom, “Torto Arado” e sua repercussão superdimensionada por meia dúzia dessa gente que acorda, bate no peito e diz “estou do lado certo da história!” me fizeram pensar nas consequências intencionais dessa revolução silenciosa que foi a destruição da imaginação brasileira por meio do ensimesmamento da cultura.
Nostalgia do Paraíso
Hoje em dia não faz nem sentido escrever sobre literatura. Neste exato momento, confesso que me sinto até constrangido em oferecer este texto ao meu editor. Ninguém lê e, quando lê, lê mal. Lê pessimamente. Lê “Torto Arado” e acha ge-ni-al o trocadilho com “torturado”. E, no entanto, escreve-se (escrevo) sobre literatura, numa mistura de dever jornalístico e de nostalgia do Paraíso.
Nem sempre foi assim. Até o fim do século XX, mais ou menos, literatura era algo minimamente presente na vida da elite intelectual brasileira. E por “elite intelectual brasileira” me refiro a pessoas alfabetizadas e que, por imposição escolar ou pressão social, tinham lido ao menos “o básico” e no mínimo sabiam defender, por exemplo, o argumento velho e esfarrapado de que obrigar um adolescente a ler José de Alencar é crime de lesa-literatura.
Me lembro de andar pelos corredores cheirando a mofo da UFPR e sempre ver nos bancos ou naquele sofá velho e rasgado fedendo a vinho barato e maconha do Centro Acadêmico alguém com um livro de ficção brasileira na mão. Estou falando de livros não-obrigatórios, que se lia por prazer ou afetação, de autores que iam do Padre Antônio Vieira a Moacyr Scliar, passando por Rubem Fonseca (era moda). Você pode até não acreditar, mas juro que um dia vi um estudante de publicidade lendo Antônio Callado.
Literatura, há não muito tempo, fazia parte da vida das pessoas. Elas tinham livros preferidos, não, clássicos preferidos. Elas conversavam sobre enredos e cenas e personagens. Elas riam se você dissesse que tinha gostado de “O Alquimista”. E perguntavam com um interesse sincero se você tinha entendido “Grande Sertão: Veredas”. Bastava você mencionar um autor cult como Raduan Nassar para atrair uma rodinha e, com alguma sorte, uma futura ex-namorada.
Leitores “especializados”
Aos poucos, porém, a literatura brasileira foi se afastando do público. Intencionalmente. Num surto de esperteza, os escritores perceberam que não precisavam submeter seu talento (e política) ao escrutínio do público. Pelo contrário. Isentos do compromisso de estabelecer um diálogo com um público minimamente amplo, isto é, sem ter como objetivo que sua história fosse consumida pelas pessoas comuns, os escritores podiam se dedicar ao seu verdadeiro ofício: o da bajulação.
Hoje em dia, a literatura brasileira é isto: um clubinho que promove despudoradamente o troca-troca de mesuras. Os leitores comuns, como já havia alertado há 15 anos o presciente autor de “O Cabotino”, foram trocados pelos leitores “especializados” e seus textos impenetráveis em publicações acadêmicas. Os autores que antes almejavam a glória de serem chamados de poetas pelos ribeirinhos do Maranhão, como contou certa vez Ferreira Gullar, hoje fazem das tripas coração para virarem tema de mestrado ou debate na FLIPIO – Feira Literária de Piraporinha do Oeste.
É nesta nova tradição que se insere “Torto Arado”. Não é um livro para ser saboreado na noite de sábado; é um livro para ser debatido à luz de Bakhtin e, com alguma sorte e um empurrãozinho da Ancine, virar cinema nas mãos de um Kléber Mendonça Filho qualquer.
O leitor? Que se dane. As vendas? Que se explodam. Há todo um circuito literário organizado, promovido, ocupado e frequentado por esses escritores sem leitores, mas com os egos cheios de loas, no qual se discute, em mesas-redondas concorridíssimas, “A Importância das Aspas Francesas em ‘Torto Arado’: neofrancocolonialismo ou frescura?” ou “De ‘São Bernardo’ a ‘Torto Arado’, Uma Visão das Oligarquias Agrícolas Fascistas Ultraliberais”. E coisas assim.
Assim encastelada, entrincheirada e ensimesmada, a literatura brasileira além de tudo dá a sua valiosa contribuição para o processo mundial de esmagamento do espírito humano, transformando-o pouco a pouco num amontoado de células guiado mais ou menos ao acaso por reações físico-químicas e uma moralidade pragmática. Mas isso é assunto para um outro texto.
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